Projeto da Santa Casa da Misericórdia de Amares está a apoiar a população idosa rural nos extremos do concelho

Verde infinito. Passarinhos a chilrear. Encostas escarpadas que até causam algum medo. Estradas secundárias com curvas que desafiam as juntas da carrinha que segue ladeira acima, carregada de mantimentos, técnicos da Misericórdia de Amares e o jornalista do Voz que foi testemunhar o encontro que está para acontecer. Mas o que mais preenche o carro é a esperança. Esta reportagem do Voz começa não na assepsia de um hospital ou no acolhimento de algum lar, mas sim na idílica e afastada freguesia amarense de Bouro-Santa Maria, nos confins do Minho profundo.

Esta odisseia só acontece graças ao projeto "Aproximar Amares", executado pela Santa Casa deste concelho. A iniciativa teve origem no concurso “Gulbenkian Cuida”, promovido no âmbito do Fundo de Emergência Covid-19 da Fundação Calouste Gulbenkian em cooperação com o Instituto da Segurança Social. O fundo tinha como finalidade reforçar a capacidade de resposta das instituições da sociedade civil no apoio a idosos. O projeto da Misericórdia de Amares foi um dos contemplados, porventura por ter ousado ir “mais longe”. A geografia da terra levou-os a ir apoiar a população idosa rural nos extremos do concelho, muitos deles em situações de carência, não só económica, mas também e especialmente afetiva, por conta do isolamento a que estão votados.

As visitas acontecem com alguma periodicidade e almejam promover a “literacia” para a saúde, colocando à disposição dos parceiros do projeto (como a segurança social ou juntas de freguesia, que, mais próximas da população, ajudam na referenciação dos casos) o conhecimento dos profissionais da Misericórdia. O objetivo é explicar a estes idosos o que é o novo vírus e como evitá-lo. São ainda distribuídas máscaras e alimentos essenciais, prestada assistência médica e psicológica básica no local e, caso sejam detetados casos que demandem avaliações médicas suplementares, é feito um encaminhamento. Para colmatar estas distâncias, foi ainda criada uma linha de apoio que funciona em permanência, um call center para o qual os idosos referenciados podem chamar em caso de urgência ou necessidade.

Depois de bem mais de meia hora de deslocação, vendo o aproximar de mais uma subida íngreme e estreita, com o acionar do pisca, o repórter, incrédulo, ganha voz na reportagem: “Deve estar a brincar que vamos subir aí, certo?”. Ao volante, quem responde afirmativamente é Odete Santos, responsável pela área de assistência social e coordenadora do projeto, que ainda envolve duas enfermeiras, Magali Alves e Diana Rodrigues, uma psicóloga, Vanessa Neves, e uma administrativa geral, Raquel Brandão.

Vencida esta última etapa, finalmente o carro para, é descarregado, mas ainda temos de caminhar até chegar à casa da dona Elvira Gonçalves, de 69 anos. Tendo tido antes uma primeira visita de triagem, o sorriso logo se abre, embora se note que a presença de quatro pessoas cause algum espanto. Pousa-se o cabaz de alimentos e a enfermeira conversa, faz recomendações acerca da saúde e medicação da senhora. Queixando-se de dores nas pernas, mede-se-lhe as tensões, felizmente em ordem.

“O que melhorou com este apoio?”, pergunta o jornalista. “As compras”. Embora para a maior parte dos leitores possa parecer algo corriqueiro, a dona Elvira explica-nos que, não tendo parentes próximos que a ajudem, o simples ato de “ir ao mercado” para ela implica uma longa caminhada (o que talvez ajude a explicar as dores) até uma paragem onde possa apanhar um autocarro, o que só acontece “enquanto há escola”, como frisa, e, por fim, um táxi. Uma despesa significativa para quem sobrevive de uma reforma “apertada”.

Ainda que o tempo urja, a conversa estende-se, porque “faz falta”, diz-nos a dona Elvira. “Não tem muitos vizinhos, pois não?”. “Poucos, só os vejo ao fim do dia. No inverno, nem os vejo. Vamos como os santos”.

Despedimo-nos e há a tentação dos beijos e abraços desejados, mas as batas e máscaras das profissionais logo lembram que, por agora, os afetos têm de ser forçosamente contidos. Mas a jornada ainda não acabou.

A caminho da vila, a paragem é em Dornelas. Ao aproximarmo-nos do portão, o cão da casa logo ladra. É o alerta da nossa chegada, por conta de dificuldades auditivas da dona Amélia Tinoco, de 81 anos. “São as minhas santas!”, exclama contente a idosa, enquanto nos convida a entrar.

A rotina repete-se e questionada sobre o que para ela representava o apoio, responde: “A minha reforminha vai toda para remédios, tenho muitas consultas, algumas no hospital em Braga, é uma grande ajuda”. Na alegria de ter com quem falar, enquanto é examinada e se queixa igualmente de dores nas pernas, logo surgem recordações de uma peregrinação feita a Fátima há quarenta anos. Como frisa Odete: “Muitas vezes saímos com a ideia de fazer duas ou três visitas, e acabamos só conseguindo uma”. Máscaras, alimentos, o cartão com o número do call center e explicações pacientemente entregues, seguimos, pois ainda temos o provedor Álvaro Silva à espera.

Na sede da instituição o principal responsável desta jovem Misericórdia, fundada em 1951, o provedor Álvaro Silva aponta-nos que tem muito bem focadas no futuro uma missão e uma visão. “Amares está a envelhecer a uma velocidade muito superior ao nível nacional. Sabemos, por números da PORDATA que para cada cem jovens hoje temos 144 idosos. Em 2010 eram 91 idosos, um crescimento de mais de 50%. Isto é muito grave.”

Estar junto desta população mais idosa é a sua preocupação principal e a pandemia agravou-a, motivando a candidatura ao concurso “Gulbenkian Cuida”. O seu principal desejo, diante dos inúmeros constrangimentos financeiros, é requalificar o lar de idosos, que assume não ter as condições condignas que eles mereceriam e pelo menos dobrar a sua capacidade. Para o provedor Álvaro Silva, o envelhecimento da população precisa de respostas, pois, trata-se, a seu ver, de uma questão social de fundo que terá consequências gravosas e para breve.

O projeto "Aproximar Amares” estende-se pelo menos até dezembro deste ano, sendo reavaliada a situação pandémica naquela altura.

Voz das Misericórdias, Alexandre Rocha