Ludoteca da Misericórdia de Mértola desafiou idosos a bordarem em retalhos os sentimentos provocados pela pandemia de Covid-19

“Vamos vencer a pandemia e viver com alegria”. “Solidão, solidão e mais solidão”. “O vírus separou-nos, mas a nossa amizade continua e vai retomar assim como todas as atividades que nos uniram e vamos ser muito felizes novamente”. Todas estas frases ilustram o sentimento com que alguns idosos do concelho de Mértola enfrentaram os dias de confinamento impostos pela pandemia, onde o isolamento a que já estão habituados no dia-a-dia ganhou novos contornos. Frases cheias de sentimento que são igualmente retalhos de pano cru (alguns bordados a ponto cruz) unidos a linha na “Manta das Emoções”.

“A esperança está muito presente nestes trabalhos”, confidencia Emília Colaço, coordenadora da Ludoteca da Santa Casa da Misericórdia de Mértola, no distrito de Beja, que tem dinamizado este projeto ao longo das últimas semanas.

A Ludoteca, que tem financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian até novembro de 2022 no âmbito do concurso “Envelhecimento na Comunidade”, está no terreno há alguns anos, levando livros aos locais mais recônditos do concelho, mas também promovendo ateliês de artes e ofícios ou ações de promoção de boas práticas em saúde. A pandemia veio alterar o plano de ação previsto para este ano, mas logo que o confinamento acabou surgiram novas iniciativas e ideias, a começar pela “Manta das Emoções”.

“Assim que foi permitido, começámos a ir ter com as pessoas. E o primeiro desafio que lançámos foi mesmo este, ou seja, tentar que todas aquelas emoções que nos eram transmitidas pelo telefone fossem, de alguma forma, apresentadas à maneira de cada um. E há ‘retalhinhos’ muito, muito bonitos”, sublinha Natália Cardeira, uma das animadoras da Ludoteca, juntamente com Lurdes Valente.

Segundo esta técnica, “cada um dos retalhos [que compõem a futura ‘Manta das Emoções’] é de uma pessoa diferente e conta uma história diferente. Há aqui pessoas com 90 anos e outras mais novas. E há panos muito, muito interessantes, que espelham nitidamente as histórias de cada um”, frisa.

Os sentimentos de cada retalho, todos bordados por mulheres de várias idades e oriundos de diversos locais do concelho, variam entre a tristeza e a esperança, entre a solidão e o ânimo de quem continua a acreditar num futuro em que a normalidade de outrora regressará.

“Temos pessoas que nos transmitem medo e pavor e temos outras que nos tentaram transmitir esperança”, observa Emília Colaço, ao que Natália Cardeira acrescenta: “A manta fez com que elas refletissem sobre esta situação que todos passamos. Tanto as coisas más, como o que nos deve dar esperança. Porque nesta idade é importante perceber que o chegar a amanhã é uma vitória”.

Tanto Emília Colaço como Natália Cardeira reconhecem que estes tempos de pandemia afetaram não só as pessoas, mas também (e muito) a vida em comunidade nas aldeias e vilas do concelho de Mértola, situado no interior do Baixo Alentejo.

“A vida social quebrou-se muito e nota-se muito isso nos funerais, por exemplo. As pessoas até podiam viver sozinhas ou em casal, mas depois tinham a comunidade”, diz Natália Cardeira, sublinhando que nestes dias a “fé veio muito ao de cima”, assim como a capacidade de adaptação de cada um às contrariedades. “As pessoas começaram a adaptar-se e a adquirir novos hábitos. Mantendo sempre o que era possível, como tratar das galinhas ou da horta”, conta.

São todas estas vivências e estados de espírito que surgem tecidos na “Manta das Emoções”. Um total de 20 retalhos por cada uma das sete faixas de tecido idealizadas para compor um arco-íris, símbolo da pandemia, mas também da esperança que estes tempos exigem. Trabalhos de autor, bordados com sentimento e que a Ludoteca da Misericórdia de Mértola pretende vir a mostrar até final do ano. “A nossa ideia é, se houver condições, fazer uma exposição com estes trabalhos”, assevera Emília Colaço.

Kit de estimulação cognitiva

O trabalho da Ludoteca da Misericórdia de Mértola também chega aos utentes do apoio domiciliário da instituição. É a pensar nestes que está a ser criado um kit de estimulação cognitiva, que deverá começar a ser distribuído no final do mês de setembro. “São pessoas que estão em casa, com mais limitações”, frisa Natália Cardeira, explicando que cada kit será composto por lápis, borracha, apara-lápis e atividades “personalizadas”, como palavras cruzadas e exercícios matemáticos, sempre tendo em conta as competências pessoais de cada um. “Há pessoas que não sabem ler e há outras que não sabem ler, mas sabem fazer contas, daí esta diferenciação”, justifica.

Ateliês para ver na internet

A par da “Manta das Emoções”, a Ludoteca tem vindo a realizar vídeos em diversos locais do concelho, que depois coloca na sua página no Facebook e que acabam por “substituir” os ateliês “Arte em Movimento”. “O último vídeo que fizemos é de um senhor que faz cestos com canas e é giro perceber que as pessoas gostam de ver isto”, diz Natália Cardeira, garantindo que só esta publicação já teve cerca de 1700 visualizações.

Segundo esta responsável, o grande objetivo dos vídeos é fazer com que os participantes tenham noção que, apesar de não poderem sair de suas casas, “ainda podem fazer imensas coisas”. No fundo, complementa a coordenadora Emília Colaço, “tentamos levar uma mensagem de esperança a todos. Apesar de tudo, estamos cá a fazer a sentir à pessoa que está em casa, quer pelas redes sociais quer presencialmente, que podem contar connosco e com a Ludoteca”, conclui.

Voz das Misericórdias, Carlos Pinto