Talvez nenhuma instituição estará tão legitimada a dar uma resposta autêntica a este desafio como estão as Misericórdias.

Mariano Cabaço, diretor do Gabinete de Património Cultural da UMP

A Páscoa de 2020 fez coincidir na quaresma uma quarentena. Para ironia do nosso destino coletivo, fomos surpreendidos por uma pandemia que nos forçou ao recolhimento, isolamento e contenção social, procedimentos tão comuns a uma vivência espiritual da quaresma.

Tudo o que parecia normal, adquirido e seguro se tornou perigoso, incerto e frágil.

Confrontados com uma nova realidade, que a todos surpreendeu, percebemos que as rígidas regras e leis que pensámos inamovíveis, de repente se tornaram incómodas e puderam ser suspensas em nome do interesse maior de salvar vidas.

Se a quaresma representa um caminhar de reflexão e conversão espiritual com vista ao Dia Grande da Páscoa, a quarentena representou uma atitude cívica de comunidade responsável para evitar a maior perda de vidas nesta pandemia.

É à volta da vida que ambas as realidades se posicionam. Vencer a morte pela vida é também a equação do tempo presente.

Neste âmbito muito se tem dito que desejamos rapidamente regressar à normalidade das nossas vidas. Mas, depois da vivência desta realidade será melhor, e expectável mesmo, que não voltemos ao normal que vínhamos trilhando. Devemos recusar voltar às rotinas e a procedimentos perigosos, para adotarmos uma nova forma de estar e viver em comunidade. Para isso, mais uma vez as Misericórdias, e o seu ideário programático das obras de misericórdia, podem e devem acrescentar valor às opções que viermos a tomar.

Talvez nenhuma instituição estará tão legitimada a dar uma resposta autêntica a este desafio como estão as Misericórdias.

A sua história secular de serviço e humanismo, o esforço que assumiram nesta pandemia e o que lhes vai ser pedido para enfrentar a crise social que se avizinha, colocam as Misericórdias numa posição central para uma mudança radical das nossas vidas.

Uma nova ordem civilizacional impõe-se na gestão da casa comum e como jamais voltaremos à normalidade do passado recente, seria bom termos coragem para arriscar alguns princípios fundacionais do novo normal que iremos construir.

No tempo e no espaço que nos esperam, teremos a possibilidade única de ser agentes de mudança. Não desperdicemos essa oportunidade.

Originalmente publicado na edição de abril de 2020 do Voz das Misericórdias