As ajudantes familiares de apoio domiciliário são por vezes o único rosto que bate à porta, quando não há familiares nas imediações

Quando estamos confinados a quatro paredes, o tempo distende e os dias são iguais entre si. Os minutos são horas e a solidão esfuma-se com o ruído da televisão. O retrato é comum a várias casas portuguesas e é também uma realidade no concelho da Amadora, onde cerca de 20 mil idosos vivem sozinhos e sem qualquer rede de apoio. As ajudantes familiares de apoio domiciliário (SAD) são por vezes o único rosto que bate à porta, quando não há familiares nas imediações. Depois de cumprido o horário de trabalho, muitas delas vestem a camisola de voluntárias para levar sorrisos e preencher o vazio das casas, ao abrigo do programa “Isto é converSADelas”.

Tudo começou em 2017, no âmbito de uma iniciativa de capacitação das equipas de SAD com vista à valorização desta categoria profissional no seio da organização. Coordenado pelo Gabinete de Recursos de Inovação e Intervenção Social (GRIS), o programa procurou desde o início “dar visibilidade ao trabalho das ajudantes, promover o relacionamento interpessoal e ir de encontro às suas motivações”, explicou Adriano Fernandes, responsável do GRIS.

A meta foi cumprida com sucesso em dinâmicas de grupo muito participadas, resultando na criação de um projeto de visitas voluntárias aos idosos em situação de maior isolamento e vulnerabilidade, que abrange os quatro núcleos de SAD (Norte, Moinhos da Funcheira, Centro e Sul). O apoio prestado a cerca de 60 pessoas é adequado ao perfil e necessidades de cada utente e pode incluir desde uma refeição e limpeza, a uma conversa, passeio ou recado no exterior, que complementa o pacote de serviços já assegurado pelas visitas de SAD. 

Para as ajudantes-familiares que colaboram voluntariamente no projeto é menos uma hora de descanso ou lazer, mas para os idosos que moram sozinhos as visitas são o ponto alto da semana. Servem chá e bolinhos, como num dia de festa, partilham histórias de vida ou saem à rua para beber uma bica no café da esquina. Tudo serve de pretexto para aquecer o coração. 

No dia da nossa visita, batemos à porta de Conceição Lopes, viúva de 83 anos com filho e netos a residir no estrangeiro. Vive sozinha no alto de um segundo andar sem elevador e tem problemas de visão, o que dificulta as saídas ao exterior. As voluntárias convidam-na por isso a passear sempre que a visitam.

Hoje não vale a pena insistir porque as dores de cabeça incomodam a nossa anfitriã. Instalamo-nos, por isso, nos dois sofás da sala, decorada com retratos de família. “Já falou com o seu filho hoje?”, pergunta Madalena Furtado, a voluntária que a acompanha mais regularmente. “Falamos todos os dias, ele liga várias vezes”, anui. Celestino da Conceição vive na Suíça, mas junta os dias de folga para matar as saudades da mãe. Chega no dia 13 [de agosto]. Vão almoçar fora e passear a Cascais, uma das rotinas que gostam de cumprir. 

Não esquece a data. Nem o número de telefone, que sabe de cor, mas, pelo sim pelo não, está gravado a carvão num caderno ao lado do sofá. Diz a sabedoria popular que as conversas são como as cerejas e assim se comprova durante quase duas horas de diálogo. 

As palavras fazem-nos recuar 60 anos no tempo, até à mocidade numa aldeia em Felgueiras. Tempos difíceis, sem muito para comer, que a levaram até ao hospital de Alcácer do Sal, onde trabalhou como ajudante e conheceu o rapaz que viria a ser seu marido. Depois de uma carta trocada às escondidas é expulsa pelas freiras e regressa à terra natal. O rapaz vende a bicicleta para comprar o bilhete de comboio e segue-lhe o rasto até Felgueiras, onde se instala num quarto emprestado. “Mas dormia com quem?”, pergunta uma das voluntárias. “Com o colchão”, brinca Conceição Lopes. “Naquele tempo era tudo pelo respeito, tivemos de esperar muito tempo para casar pela igreja. Ele não era batizado e teve de fazer a preparação”. 

“Essa história parece um filme”, comenta divertida a voluntária Celina Semedo. Em pouco tempo, tornam-se confidentes e trocam olhares cúmplices. Riem muito, até a voz se esgotar. A dor de cabeça desaparece por fim, efeito do comprimido e da boa disposição que, entretanto, se apoderou desta casa. “Gosto muito destas visitas, fazem-me tão bem”, conta a idosa. A televisão passou para segundo plano e a ação desenrola-se em direto na sala de visitas.

É difícil não nos envolvermos no enredo da exímia contadora de histórias, que nos chega com detalhe quase cinematográfico. Madalena Furtado, ajudante-familiar do SAD Moinhos da Funcheira, acompanha Conceição de perto há largos meses e não disfarça a afeição que nutre pela avó emprestada. “Às vezes parece que somos da família deles. Chegamos a casa e temos a cabeça noutro sítio, ficamos a pensar se a pessoa já comeu e ficamos de coração apertado”.

Na hora da despedida, as palavras multiplicam-se como acontece na casa da avó ou da tia que não nos deixa partir. Apesar da visão turva, Conceição assiste do alto das escadas à nossa partida com um sorriso. Madalena dá-lhe um beijo na mão e deixa um ultimo recado: “enquanto cá está é porque tem uma missão”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas