“Voluntário: aquele que faz de livre vontade, sem constrangimento, que procede espontaneamente”. Fora do dicionário, na vida de todos os dias, os voluntários que chegaram às Misericórdias, em tempo de pandemia, foram profissionais dedicados, companheiros de missão e amigos nas horas vagas. Vieram de vários pontos do país, através de plataformas de âmbito local e nacional, contactos informais na comunidade ou recomendações de congéneres e foram uma “lufada de ar fresco”, num momento de desânimo, desgaste e risco iminente. Depois de 14 ou mais dias fora das suas casas, os voluntários despediram-se com um abraço no olhar e a certeza de que esta “foi a melhor experiência” das suas vidas.

Os voluntários que passaram pelas Misericórdias nos últimos meses são pessoas de todas as idades e áreas de formação, com o trabalho suspenso, aulas à distância, em teletrabalho ou desempregados, que responderam aos apelos feitos na comunidade, imprensa ou redes sociais.

Ajudaram as equipas desgastadas a conter a propagação do vírus dentro dos lares, quando foi necessário isolar e assegurar cuidados aos idosos em diferentes espaços da instituição, levaram refeições e uma palavra amiga aos seniores confinados no domicílio e têm colaborado na recolha e entrega de alimentos e refeições a famílias e pessoas isoladas.

São o Bruno, a Vera, a Rita, a Joana e outros nomes que ficaram gravados na memória de todos, com a promessa de um regresso, sem máscara, viseira e fatos de proteção.

Em Melgaço, Vila Nova de Foz Côa e Gouveia, Misericórdias fustigadas pelo novo coronavírus, o apoio dos voluntários foi “determinante” para assegurar cuidados aos idosos, nas semanas em que enfrentaram casos de infeção dentro de portas e estiveram com as equipas reduzidas, devido a baixas médicas, assistência à família e situações de isolamento profilático.

Quando chegaram a Vila Nova de Foz Côa, no distrito da Guarda, Ana Rita e Mara, amigas e colegas de curso, encontraram uma imensidão de tarefas para realizar, devido à falta de funcionários, e um número elevado de infetados. O dia de trabalho começava às 07 horas com a higiene e alimentação de utentes, medição de sinais vitais, com orientação da enfermeira, e prosseguia com conversas e momentos de evasão com os idosos. Durante o turno de oito horas, esqueciam a fome ou sede para se dedicar em exclusivo aos idosos, submersas em camadas de tecido, viseiras e máscaras que deixavam revelar apenas o olhar. “Apesar da tristeza, por não poderem ver os familiares, nunca faltava um sorriso para nós. Agradeceram muito a nossa ajuda e sentiram-se muito gratos”, recorda Ana Rita Ferreira, 22 anos.

Quando se inscreveram na plataforma da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social, foi com o propósito de “ajudar em tudo o que fosse necessário, mesmo que fora da área de formação [Educação Social]. Somos adeptas do voluntariado, já faz parte do nosso ADN”.

Sem a ajuda dos 45 voluntários que passaram por Vila Nova de Foz Côa entre 29 de março e 26 de abril, o provedor António Morgado admite que a Misericórdia “teria colapsado”. No período mais crítico, enquanto não chegaram os primeiros jovens, um grupo de sete trabalhadores garantiu cuidados a 62 idosos (47 infetados) dia e noite.

A experiência de voluntariado foi tão positiva que em pouco tempo estava a recomendar a plataforma de voluntariado “COmVIDas” ao provedor da congénere de Gouveia, que chegou a “ter 1/3 dos funcionários em casa, uns com baixa, outros em quarentena e alguns, com muitos anos de casa e problemas de saúde, pediram a demissão”, lembra Luís Abreu Mendes.

No primeiro apelo feito junto da comunidade, em Gouveia, conseguiram reforçar a equipa com cinco voluntários, que já tinham trabalhado na Santa Casa, e em finais de abril, chegaram 13 estudantes “extraordinários” (enfermagem, medicina e outras áreas), com idades entre os 19 e 21 anos, vindos de vários pontos do país. “Foi uma luz que se acendeu, vinham muito bem preparados, com muita vontade de ajudar, sem medo e sabiam lidar com os idosos”.  Com os jovens veio também uma guitarra e a redenção através de melodias intemporais.

Antes de partirem para a “missão” no terreno, os voluntários receberam três sessões de formação via zoom, com uma psicóloga e um enfermeiro da organização COmVIDas, que lhes deram foco e ferramentas para concretizar o seu objetivo em segurança. E isso fez toda a diferença quando foram chamados para o epicentro do furacão em pouco mais de 24 horas. “Nunca pensei que fosse tão rápido e fácil, num fim de semana resolvi o problema”, disse o provedor de Gouveia.

Estes jovens chegaram às Misericórdias no pico do surto infecioso, com uma coragem que surpreende os audazes. “Vieram cheios de boa vontade, prontos para meter mãos à obra e agarraram nas tarefas que lhes foram atribuídas, com espírito, boa disposição e carinho. Nem sei como tivemos esta sorte de receber pessoas com uma aura tão boa e disponibilidade tão inata”, recorda o provedor de Melgaço, Jorge Ribeiro.

Depois de identificado o surto, que afetou quase metade da população do Lar Pereira de Sousa, a instituição identificou o voluntariado como área prioritária no combate ao vírus, onde incluiu ainda um gabinete de crise, de apoio às famílias e colaboradores. Os voluntários chegaram em meados de abril, num momento decisivo, em que foi necessário separar os utentes e transferir os não infetados para a pousada da juventude do INATEL, em Vila Nova de Cerveira. Nesta fase, a colaboração de voluntários e funcionários de outras respostas sociais foi determinante para travar a contaminação sem comprometer a prestação de cuidados.

Os dias de Bruno Viana, 34 anos, iniciavam com o raiar do sol, pelas seis da manhã. Todos os dias abria a porta às auxiliares, com quem partilhava tarefas como mudanças de roupa, higiene do espaço ou apoio nas refeições. Em diversos momentos da conversa com o VM, destaca a admiração que nutre por estas funcionárias, que “são tudo para estes idosos, auxiliares, enfermeiras, cozinheiras, não tinha noção do trabalho que fazem, que é desvalorizado por completo”.

Durante 15 dias, a pousada de juventude foi residência permanente para os voluntários e idosos, que partilharam o mesmo teto, as mesmas rotinas e vulnerabilidades. “Esta foi a experiência de voluntariado mais intensa que vivi, e também aquela em que aprendi mais”, confessa. Por estar confinado e 24 horas por dia no mesmo espaço, estreitou laços com os habitantes da casa, que guarda para a vida. “Criou-se uma ligação muito grande e neste momento somos todos amigos. Foi uma sorte termos funcionado tão bem como equipa”.

Mesmo sem casos de infeção, algumas Misericórdias recorreram a voluntários e colaborações extra por falta de elementos nas equipas. A rotatividade e sistema em espelho, com turnos de 7 ou 14 dias alternados, motivou em parte esta necessidade. São os casos de Montargil, mas também de São Brás de Alportel e Vila Real de Santo António, que recorreram a contratações no âmbito da medida criada pelo IEFP, para o reforço de equipamentos sociais e de saúde.

A Misericórdia de Montargil recebeu cinco voluntárias da plataforma “COmVIDas”, com idades entre os 20 e 24, que segundo a diretora técnica do lar, Regina Silva, ajudaram a “equilibrar as equipas e criaram laços e enorme proximidade com os idosos, que choraram na despedida”.

Nas congéneres algarvias, a procura de voluntários culminou na contratação temporária de elementos extra para a equipa, por um período máximo de três meses, ao abrigo da medida do IEFP, enquanto decorre a rotatividade das equipas em espelho. “Esta Covid-19 trouxe muita coisa má, mas também muita coisa boa. Muitas pessoas olharam para as Misericórdias com olhos bonitos e numa vila como a nossa foi muito positivo termos 35 pessoas interessadas em fazer voluntariado”, revela o provedor de São Brás de Alportel, Júlio Pereira.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Fotografia: Misericórdia de Melgaço

 

Apesar da tristeza, por não poderem ver os familiares, nunca faltava um sorriso para nós. Agradeceram muito a nossa ajuda e sentiram-se muito gratos

Ana Rita Ferreira, Voluntária na Misericórdia de Vila Nova de Foz Côa

Esta foi a experiência de voluntariado mais intensa que vivi, e também aquela em que aprendi mais. Não tinha noção do trabalho que fazem

Bruno Viana, Voluntário na Misericórdia de Melgaço 

Tem sido muito gratificante, sobretudo nas entregas das refeições, quando recebemos um agradecimento sincero das pessoas com mais idade. Supera tudo o resto

Bruno Moura da Conceição, Voluntário na Misericórdia de Cascais