A Casa de Acolhimento Residencial (CAR) D. Nuno Álvares Pereira, da Misericórdia de Almada, é uma casa de vidro com portas abertas ao exterior. A metáfora usada pela equipa técnica serve na perfeição o propósito do lar que acolhe crianças e jovens em perigo: acolher num ambiente familiar e seguro, reparar o trauma e ajudar a construir percursos de vida autónomos e integrados na sociedade. Um modelo de intervenção em rede que, segundo as equipas no terreno, carece de mais articulação, recursos e atualização do financiamento, conforme foi frisado na visita à CAR e no colóquio “Do acolhimento à família, um caminho em rede”, dinamizado em Almada a 16 de novembro.

“Faltam recursos para cobrir os territórios e garantir um apoio psicossocial direto com as famílias. Em Almada, isso é gritante porque a mesma equipa [Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental (CAFAP)] dá cobertura a dois concelhos (Almada e Seixal). Estamos a falar de um tipo de intervenção que não se resolve com duas visitas, tem de haver um trabalho mais próximo com as famílias”, alertou Joaquim Barbosa, provedor da Misericórdia de Almada, durante uma visita ao equipamento gerido pela instituição desde 1976.

A medida de acolhimento, no âmbito da lei de promoção e proteção, surge após sinalizada uma situação de perigo pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) ou tribunais judiciais. Entendida como situação transitória, a intervenção neste tipo de resposta social prolonga-se, muitas vezes no tempo, sem perder o foco na missão que lhe deu origem: definir um projeto de vida que garanta a autonomia e reintegração social e familiar dos jovens.

“As crianças e jovens que nos chegam trazem fragilidades e traumas profundos, que se refletem sobretudo em termos comportamentais. Entram cada vez mais tarde e com consumos de substâncias psicotrópicas, comportamentos de risco, situações de pré-delinquência e doença mental. São perfis muito desafiadores para um grupo de recursos humanos que é o mesmo desde 2011, data da última revisão do acordo [da Segurança Social]”, esclarece a diretora técnica, Liliana Silva.

A equipa, constituída pela diretora técnica, psicóloga, assistentes sociais, animadora sociocultural e ajudantes de lar, desdobra-se em cuidados ao grupo de 45 crianças e jovens entre os 6 e 21 anos (o mais velho prepara a autonomização) que encontra aqui refúgio para crescer em segurança.

A meio da manhã, o silêncio reina nos corredores do edifício no centro de Almada. Os seus habitantes saíram cedo para as aulas, em diversos estabelecimentos de ensino do concelho. Todos conhecem os horários de estudo, lazer, refeição e descanso e transmitem aos recém-chegados as rotinas que regem o funcionamento da casa. Além de garantir a harmonia entre todos, “as regras comuns transmitem segurança e previsibilidade”, explica a diretora técnica.

Um dos compromissos dos jovens, a partir do momento em que entram, é a participação nas sessões de grupo quinzenais, orientadas pela psicóloga Adelaide Pinheiro. “Trabalhar em grupo é uma ferramenta poderosa, em conjunto encontram-se formas para lidar melhor com a adversidade e desenvolvem-se competências para dialogar com os outros”, justifica.

Com uma função terapêutica, estes pequenos grupos – 6 a 8 elementos – permitem refletir sobre a vivência em comunidade, focando temas que lhes são próximos como a igualdade de género e o bullying, a autoestima e a gestão de emoções. Mas as sessões não são feitas apenas de discussão. Também partem do diálogo para a exteriorização de emoções e interação com a comunidade, socorrendo-se de instrumentos como a “criatividade e o humor, que são dois grandes amigos da saúde mental”.

Destas sessões já saíram alguns “projetos fora da caixa”, que são motivo de orgulho para a instituição, como um livro de testemunhos (2017), dois espetáculos de dança (2021) e uma pintura mural (2022). “Queremos que esta seja uma casa envidraçada e que as pessoas nos vejam na totalidade, por isso as nossas iniciativas passam por envolver a comunidade para que percebam que as nossas crianças são iguais às outras”, justificou Adelaide Pinheiro.

Em pequenos detalhes, percebemos que as crianças e jovens estão no centro desta casa de afetos: fotografias com rostos sorridentes, dedicatórias de amor para as técnicas e gestos de carinho entre os jovens e elementos da equipa. “Sabes que és muito importante para mim, como amiga, como mãe. Amo-te”, lemos num dos bilhetes afixados no gabinete da psicóloga.

Do acolhimento à autonomia e reunificação familiar

Nada substitui, contudo, a vida em contexto familiar, admite a equipa, corroborada a 16 de novembro pelos técnicos de outras CAR, CPCJ e Segurança Social, reunidos em debate. “Eles sentem que são cuidados, mas há sempre a mágoa de não ser a família a fazê-lo. Eles têm noção que a vida familiar continua lá fora e que eles não fazem parte”, partilhou Liliana Silva.

Para atenuar essa descontinuidade no decorrer do acolhimento, a articulação com as famílias passa por “envolver os pais nas rotinas dos filhos, promover uma relação saudável entre ambos e perceber qual o caminho para a mudança”, sendo complementada de forma mais próxima pelos CAFAP e projetos locais, que capacitam e preparam as famílias para a reunificação. “O que está em cima da mesa é sempre a reunificação, mas temos mais casos de autonomização”, adiantou a diretora técnica.

De forma gradual, os jovens são preparados para a vida fora do meio protegido em que se encontram, através da gestão das finanças pessoais, organização do estudo, saídas ao exterior, e nalguns casos integração no mercado de trabalho. Segundo a responsável da CAR, trata-se de um modelo de "autonomia controlada" e prática simulada, que está disponível num manual técnico para as equipas e num site criado a pensar nos jovens, lançados a 16 de novembro. Mesmo que possam regressar para pedir um conselho amigo, não deixa de ser "assustador sair sem ter ninguém lá fora".

Preparar este caminho de autonomia, de forma serena, capaz e duradoura, passa desta forma por criar e potenciar as redes formais e informais ao dispor na comunidade. E não deve excluir, em momento algum, o jovem da equação e tomada de decisão. Essa foi também uma das mensagens transmitidas pelos diferentes interlocutores no colóquio: ouvir as narrativas da criança e do jovem e fazer deles os principais agentes de mudança.

Aqui, como na vida lá fora, são peças de um mosaico complexo, onde são livres de se expressar com todas as cores, mesmo nos dias em que só veem a preto e branco. Tal como referiu o diretor de desenvolvimento social da autarquia, no debate coorganizado pela Misericórdia, as casas de acolhimento devem ser “espaços de bondade” (Saramago) onde todos têm direito a recomeçar e ser felizes, mas essa responsabilidade é transversal à sociedade.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas