No arranque do ano letivo, as despesas com propinas, alojamento e alimentação pesam na conta dos agregados familiares, a que se juntam ainda gastos de saúde e transportes. Para que os jovens não sejam privados da oportunidade de ingressar no ensino superior, entidades como as Misericórdias, fundações, autarquias e Direção-Geral do Ensino Superior atribuem bolsas de estudo e disponibilizam quartos em residências universitárias. O apoio aos jovens universitários insere-se num dos objetivos de Desenvolvimento Sustentável, definidos pela Organização das Nações Unidas para 2030, e a transformação desta visão em realidade só é possível com a colaboração de todos os agentes da sociedade.
Encontrar um espaço para viver a preços acessíveis, em particular nas grandes cidades, pode ser uma verdadeira odisseia para os jovens estudantes que saem de casa pela primeira vez. O problema foi identificado pelo governo, que este ano colocou 600 novas camas no mercado regulado, mas ainda está longe de ser resolvido. A oferta das Misericórdias vem atenuar a escassez de camas.
Carolina, Ana e Inês chegaram a Lisboa de malas feitas, no início de setembro, para se matricularem na faculdade onde vão estudar nos próximos anos. O número 31 da Rua Carvalho de Araújo vai ser a sua casa durante esse período. Ainda não conhecem todos os companheiros que vão dormir sob o mesmo teto, mas mostram-se satisfeitas com as instalações da Residência Universitária Comendador José Gonçalves Pereira, da Santa Casa da Misericórdia de Pernes.
E não é para menos. As divisões amplas e iluminadas do prédio de cinco andares foram convertidas a pensar no conforto e necessidades dos jovens recém-chegados à capital e a localização central permite chegar a qualquer ponto da cidade em menos de meia hora.
O edifício veio à posse da Misericórdia de Pernes em 1957, por via de uma doação do benemérito José Gonçalves Pereira (1878-1957), e foi transformado em casa de estudantes em 1999, durante o mandato da provedora Maria dos Anjos Patusco. “A formação dos pernenses sempre foi uma preocupação das mesas administrativas e, neste caso, foi a necessidade que nos levou à solução. Na altura, não era tão comum os jovens virem estudar sozinhos para a cidade porque representava um enorme custo e sacrifício para as famílias”, recorda o atual provedor, Manuel Maia Frazão.
Os apartamentos foram recuperados, piso a piso, à medida da disponibilidade financeira da instituição e hoje a ocupação é total: 47 camas em quartos individuais ou duplos (entre os 100 e 230 euros). Os jovens de Pernes têm prioridade no acesso às vagas, para cumprir o legado do benemérito que dá nome à residência, e são colocados juntos no 4º ou 5º andar.
Mafalda Vidal (na foto), 18 anos, vai juntar-se brevemente a esta vizinhança, depois de saber os resultados das candidaturas à segunda fase do ensino superior. Concorreu a Gestão com média de 17,5, em mais do que uma universidade lisboeta, por isso a expetativa está ao rubro. “O meu pai está muito orgulhoso, incentivou-me e disse-me que não posso perder esta oportunidade de continuar e de ter ajuda numa residência. E tem toda a razão”, anui.
Se tudo correr bem, a partir de 30 de setembro poderá ocupar um dos quartos do 4º esquerdo. “Não conheço ninguém aqui, mas uma antiga colega de escola também vem estudar para Lisboa e perguntámos se podíamos ficar juntas no quarto”, conta entusiasmada ao ver pela primeira vez a divisão de vista desafogada, mobilada com duas camas e um roupeiro.
Hoje, como no início, são os próprios residentes que asseguram a integração dos novatos, proporcionando estabilidade emocional a quem chega (filhos) e segurança a quem os vê partir (pais). E quem por cá passou na juventude guarda as “melhores recordações” da experiência em comunidade. “Nem sempre é fácil, mas dá preparação para ingressar no mercado de trabalho. Ganha-se competências para a vida de adulto”, recorda a diretora técnica da Santa Casa de Pernes, Alice Rodrigues.
Em Coimbra, a cidade dos estudantes, o apoio aos universitários é também uma tradição de longa data. A Santa Casa dispõe de alguns imóveis para arrendamento exclusivo a alunos do ensino superior, a preços acessíveis, que, segundo o coordenador geral, Joel Araújo, estão a ser alvo de recuperação para “oferecer condições mais dignas a partir de finais de setembro”. Já no Porto, a reabilitação de imóveis tem permitido alargar o número de camas disponibilizadas aos jovens, mediante parcerias com as universidades da cidade. Mais recentemente, também a Misericórdia de Faro celebrou um acordo com a Universidade do Algarve para aumentar a oferta de alojamento para estudantes.
O apoio aos estudantes não é de hoje nem de ontem. Para algumas Misericórdias remonta ao início do século XX e vem explicitada nos seus compromissos como “instrução das classes populares” (Amieira, 1913) ou “esmolas em dinheiro, géneros alimentícios, roupas, medicamentos e livros” (Elvas, 1913), em sintonia com os ideais republicanos, conforme se lê no volume 9 da Portugaliae Monumenta Misericordiarum.
Mas, nos séculos XVII e XVIII, como relata a historiadora Maria Antónia Lopes, no trabalho “Proteção Social em Portugal na Idade Moderna”, já se encontram registos dessa intervenção, sobretudo junto dos órfãos desprotegidos. Por vontade e legado testamentário de beneméritos, as Misericórdias de Vila Viçosa e Coimbra gerem colégios de órfãos, onde asseguram alojamento, alimentação e educação aos meninos, sendo que no caso de Coimbra o apoio é estendido a raparigas, através de uma aula pública gratuita, para aprender a ler, escrever e contar. Em casos isolados, algumas Misericórdias asseguravam ainda o ensino (latim, gramática etc.) a filhos de gente pobre (Covilhã).
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Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas