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- Infância | ‘Não é possível uma política séria no pré-escolar sem contar com o setor social’
Esta é a peça principal do destaque da edição de setembro do Voz das Misericórdias sobre o pré-escolar. Leia os outros artigos sobre pré-escolar nos distritos de Bragança e Setúbal, assim como nas ilhas, e leia ainda os artigos de opinião dos provedores das Misericórdias de Oeiras e Sabugal.
No arranque do ano letivo 2025/2026, as Misericórdias e restantes instituições do setor social e solidário continuam a aguardar a concretização da gratuitidade da educação pré-escolar, definida no programa do Governo, à semelhança do que aconteceu com as creches, em 2022. Enquanto o impasse não se resolve, o executivo tenta minimizar a falta de vagas na rede pública através de contratos com os privados e o setor social. Contudo, a adesão ficou aquém das necessidades, com os privados a manifestar interesse para apenas 10% das vagas (1253 das 12 mil) e o setor social a considerar insuficiente o prazo e o valor (15 mil euros) para abertura de novas salas.
A par desta indefinição, o vice-presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), Carlos Andrade, aponta como principais desafios, na gestão desta resposta, a falta de planeamento na transição do programa ‘Creche Feliz’ para o pré-escolar, a dificuldade na contratação de docentes e a concorrência dos municípios na oferta disponibilizada.
Ao VM, adiantou que “o primeiro problema é a falta de salas, decorrente da reconversão de salas do pré-escolar em creche para cumprir um objetivo político”. Acresce a isto a “falta de educadoras, para a qual contribuiu a abertura de concursos do Estado e a saída massiva de profissionais do setor social para o público, onde ganham mais”. Considerou, assim, “lamentável esta estratégia que, durante anos, levou a um afunilamento do pré-escolar numa resposta pública, não abrindo salas, não aumentando comparticipações e dizendo às câmaras para abrir salas novas, numa concorrência desleal com a qual não conseguimos competir”.
Hoje, assevera o vice-presidente, “o Governo diz-nos que não tem essa intenção, mas estes movimentos não se anulam de um dia para o outro”. Por isso, as instituições continuam a aguardar a concretização de um objetivo definido no programa do atual Governo: “acesso universal e gratuito à educação pré-escolar a partir dos três anos, contratualizando com o setor social, particular e cooperativo as cerca de 12 mil vagas que se estima faltarem nos territórios mais carentes”.
Mas o problema não é de agora. Segundo Carlos Andrade, a “relação com a educação é praticamente nula”. E, até ver, a “única coisa que alterou foi a possibilidade de concurso para salas novas [aviso de 29 de julho, Circular 61/2025 da UMP] que não é para todo o país”. Neste concurso, as salas propostas a financiamento são identificadas nos concelhos de Sintra, Loures, Seixal, Lisboa, Almada, Odivelas e Amadora, deixando de fora os locais onde as “Misericórdias têm vagas, onde há crianças para entrar, mas não há acordo”, destacou o responsável.
Crítica deixada igualmente pela CNIS, numa nota enviada às associadas e ao Governo, onde referiu que “a rede solidária é convidada a abrir salas novas, mas não é parceira para aumentar o número de vagas nos acordos de cooperação, como esperam há anos várias instituições”.
No levantamento efetuado pelo VM, os números revelam que cerca de 19% da capacidade instalada nas Misericórdias não está aproveitada. Segundo Carlos Andrade, esta discrepância entre capacidade e frequência, num total de 2831 vagas, deve-se “à falta de acordos de cooperação”. Ou seja, os acordos não abrangem a totalidade do número de vagas por sala e as famílias sem capacidade financeira optam pela rede pública, o que compromete a sustentabilidade desta resposta social. “Onde o público foi mais agressivo na oferta houve mais salas do setor social a fechar. É um sistema autofágico, onde em vez de aumentar a proteção social estamos a substituir e gastar dinheiro”, referiu.
Comentando esta situação, o responsável pelo Departamento de Ação Social da UMP, Márcio Borges, considera que este “desacerto e falta de planeamento conjunto tem obrigado a encerrar muitas salas” e é agravado pelo “problema de subfinanciamento”, após muitos anos sem atualizações nas comparticipações e um aumento parcial de 30 euros, em 2025.
A propósito do concurso lançado no fim de julho, a provedora da Misericórdia de Esposende, Emília Vilarinho, que é docente na Universidade do Minho, com especialização em políticas educativas para a infância, considera “a medida interessante por potenciar o alargamento da oferta de educação pré-escolar e a articulação entre o público e privado não lucrativo”. Embora os valores definidos no aviso (15 mil euros por sala) sejam ainda “insuficientes”, assume que o “caminho é positivo e no sentido da gratuitidade do pré-escolar, estando em linha com as orientações europeias de inclusão e luta contra a pobreza infantil”.
Recordando a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar, em 1997, pelo governo de António Guterres, a académica defendeu que “estamos novamente no caminho das políticas de terceira via, que dão a possibilidade de articulação com o setor social no desenvolvimento e expansão da rede de educação pré-escolar para dar resposta a um direito constitucional”.
De forma consensual, este acesso universal é encarado como uma forma de “mitigar desigualdades, promover o sucesso escolar e a igualdade de oportunidades desde os primeiros anos de vida”, esclarece. Mas, na prática, “ainda não há uma relação intersecional adequada entre os ministérios”. E a gratuitidade do pré-escolar tarda em concretizar-se.
Procurando traçar um retrato da realidade nacional, que regista assimetrias e diferentes ritmos, o VM apurou dados e contactou Misericórdias de norte a sul do país. Em termos de números globais, as Santas Casas dispõem, no continente (Carta Social), de 216 equipamentos, 14939 vagas e apoiam 12108 crianças. Nas regiões autónomas (ver coluna), as Misericórdias acompanham 370 crianças nos Açores e 96 na Madeira, num total de 13 equipamentos.
Números que o vice-presidente da UMP, Carlos Andrade, considera demasiado “relevantes para poderem dizer que nos dispensam, portanto, a minha convicção é que não é possível o Estado ter uma política séria no pré-escolar sem contar com o setor social”.
No distrito do Porto, a Misericórdia da Maia é responsável por 12 equipamentos de pré-escolar, com 811 vagas e 693 crianças, e confronta-se com desafios como a “concorrência do município, que tem apostado na abertura de muitas salas de pré-escolar, e consequente diminuição da frequência nos nossos espaços”, revela a provedora. “Antigamente, os equipamentos de infância ajudavam a equilibrar as contas e agora já não. Nalgumas freguesias começam a dar prejuízo”. Por isso, Maria de Lurdes Maia assevera: “Se não houver alteração na forma de negociar, os equipamentos fecham. Sem gratuitidade é uma morte lenta”.
Em Castelo Branco, a oferta também varia em função da demografia e da oferta da rede pública, com a capital de distrito a oferecer 250 das 770 vagas das Misericórdias (32%). Analisando a evolução do último ano, verifica-se ainda que há uma Misericórdia em contraciclo: a Santa Casa do Fundão, que duplicou o número de crianças no jardim de infância. O provedor Jorge Gaspar explica que o aumento decorre de vários fatores: a “celebração de acordos com empresas do município, que dão vantagens aos funcionários na inscrição dos filhos, e o facto de a própria Misericórdia ter crescido, em termos do número de funcionários (14% imigrantes), o que tem ajudado a fixar muita gente”. Este dinamismo tem levado ao aumento da procura das respostas dedicadas à infância, em particular “na creche, onde o número de crianças triplicou nos últimos quatro anos, passando de 40 para 120”.
Apesar destes esforços, persistem desafios comuns a outras regiões, relacionados com “as comparticipações baixas e a concorrência da rede pública”. No caso do Fundão, a gratuitidade da creche veio “atenuar e até suplantar o prejuízo do CATL e do pré-escolar e ter, no conjunto das três valências de infância, um resultado positivo”. Mas admite que, após anos de prejuízos, muitas instituições poderão ter de fechar a resposta, se não houver medidas concretas.
No distrito de Coimbra, sete das 22 Misericórdias têm pré-escolar, cuja frequência oscila entre as 11 e 118 crianças (Carta Social). O primeiro número é de Pampilhosa da Serra, onde a Santa Casa sente os reflexos da interioridade e da baixa natalidade, somados aos problemas que transversalmente afetam as instituições.
O provedor António Sérgio, que também é presidente do Secretariado Regional de Coimbra, justifica dizendo que “as poucas crianças que existem estão a dividir-se entre o público e social” e adiantou que no distrito são transversais as dificuldades na contratação de educadores e na sustentabilidade. Reclama, por isso, uma “clarificação do modelo que o Estado quer adotar porque esta dualidade é penosa para quem tem de gerir tudo isto no terreno”.
Nos distritos populosos de Lisboa e Setúbal, estão localizadas as freguesias mais deficitárias, em termos de oferta de educação pré-escolar. Mas isso não significa que as vagas estejam todas ocupadas, encontrando-se taxas de desocupação elevadas em Arruda dos Vinhos (50%), Cadaval (45%), Azambuja (36%). Em Oeiras, a Misericórdia tem 13 estabelecimentos de pré-escolar e o provedor Luís Bispo revela que “há respostas onde o número de vagas é superior ao número de crianças em acordo, o que não seria um problema se estivessem todas preenchidas. Mas não estão porque a rede pública nos vai buscar as crianças com a gratuitidade, deixando-nos abaixo da capacidade”, partilhou.
Em Alenquer, pelo contrário, o provedor Luís Rema afirma que não tem dificuldades em preencher salas. “Apesar do aumento, a rede pública está esgotada, as famílias gostam dos nossos profissionais, valorizam a continuidade e flexibilização de horários e calendário (não encerra para férias)”.
E o que falta para concretizar a gratuitidade? Segundo Carlos Andrade, faltam duas coisas: negociação dos valores e verba para financiar a medida. “A primeira é fácil porque implica uma análise de custos. A segunda é um problema do Governo e percebemos que, nas negociações do ano passado, não conseguiu pagar o custo real da creche, ficando 12 euros abaixo por criança, num total de 40 milhões de euros. Portanto, se não houve dinheiro para pagar a creche, não sei se haverá dinheiro para o pré-escolar”.
Em relação ao futuro da intervenção das Misericórdias nas políticas de apoio à infância, o vice-presidente da UMP assume que as “Misericórdias vão adaptar-se como sempre fizeram, o que quer dizer que reagimos em função das dificuldades e necessidades da comunidade. É isso que vamos fazer nesta matéria, porque temos tanto de antiguidade como de modernidade”.