Escrever sobre um pré-escolar pertencente a uma Misericórdia do interior do país é um desafio. Não pela quantidade de temáticas, mas pela mistura de sentimentos que podem afetar a lucidez. As cinzas cobrem um interior esquecido que sobrevive à custa de si mesmo, assente na resiliência dos que cá se encontram. As cinzas não são de agora. São de sempre, porque as políticas nunca valorizaram verdadeiramente este território.

Este artigo de opinião do provedor da Misericórdia de Sabugal, César Nascimento, integra o destaque da edição de setembro do Voz das Misericórdias sobre o pré-escolar. Leia aqui a peça principal e os outros artigos sobre pré-escolar no distrito de Bragança e Setúbal, assim como o artigo de opinião do provedor da Misericórdia de Oeiras.

A Misericórdia do Sabugal comemora, neste ano, os 50 anos do seu Centro Infantil. Surge no contexto pós-revolução para responder a uma necessidade da comunidade local. A sua génese não viria a ser fácil. A boa vontade de homens e mulheres da Misericórdia fez erguer o primeiro pré-escolar e a primeira creche num território marcado pela emigração, interioridade e abandono. Sim, a cinza deste território já vem de longe.

Durante cinco décadas nunca deixou de prestar serviço às famílias. Tendo atualmente capacidade para 75 crianças e lotação esgotada para o próximo ano letivo, representa mais de 50% da frequência de pré-escolar no concelho, sendo a primeira escolha da maior parte das famílias.

O Estado, aqui como em tantos sítios, viria criar, financiar, investir e gastar verbas num pré-escolar público, sabendo que existia já um com o qual tinha e tem parceria. Caiu por terra o princípio da parceria com o setor social.

Pese o Pacto de Solidariedade Social e o emanado por diversos documentos recentes, o financiamento e os apoios do Estado não acompanham as boas intenções, se é que existem. Com pouco fazemos muito.

Não queremos esmola nem pena. Exigimos respeito pelos compromissos assumidos e que não se acresça mais cinza àquela que já existe aqui. Temos de cumprir legalidades e exigências. É compreensível. Temos de dar qualidade de ensino. É lógico. Mas para tudo isto temos de ter mais investimento e cofinanciamento. A propagada gratuidade tarda. Talvez porque se está a dar conta, só agora, do nosso préstimo à população com tão poucos meios. Mas estes agora não chegam. Queremos o justo!

Exigem de nós uma resposta de qualidade, mas de baixo custo para o Estado. Um custo muito inferior ao da rede pública. A despesa fica do lado de quem? Da Misericórdia? Os municípios descartam, ou não, a sua intervenção nesta área conforme as ondas de vontades, para não proferir outros adjetivos. As famílias queixam-se de valores avultados, num valor médio abaixo do valor praticado em centros urbanos (este território apresenta um dos mais baixos índices de rendimento per capita e as mensalidades são calculadas sobre este princípio).

Falta a discriminação positiva que considere a baixa densidade populacional, a extensão do território, os custos em aquecimento… sim, a acrescentar às baixas mensalidades há que considerar as baixas temperaturas que conduzem a gastos superiores face a outros territórios. E uma vez mais as cinzas…às quais nos moldamos diariamente.

Estamos e estaremos prontos a dar resposta. Mas não podemos estar sós. Os agentes de decisão política enterram a cabeça na areia para não verem o óbvio: com pouco investimento no nosso setor conseguiremos ser sustentáveis, sendo sustentáveis poderemos contribuir para o alargamento do pré-escolar de qualidade que, neste momento, ninguém quer, nem dado…

Ao longo de décadas este serviço deu prejuízo que era apaziguado com a injeção recebida de outras valências, como o lar de idosos (enquanto dava). E com isto foram hipotecados investimentos noutras áreas sociais.

A resposta social da “infância come tudo”, até o sangue dos que aqui trabalham e o sono dos que lutam diariamente por esta causa. Não é má gestão. É magia o que diariamente realizamos nesta casa.

Não vamos em busca do lucro. Para isso virão os particulares. Apenas queremos renascer das cinzas. É um ato que fazemos diariamente. Cada Misericórdia à sua maneira. Mas aqui, neste interior, custa mais porque o território está cheio de cinzas que o tempo foi trazendo e não leva…

César Nascimento, Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sabugal