Virou-se para Carcavelos, no concelho de Cascais, e pisou, pela primeira vez, o chão do Bairro do Fim do Mundo, outrora Torre de Babel de telhados e paredes de tijolo inacabado.
Sem arrependimentos, mergulhada no mosaico multicultural e étnico, continua, há mais de 40 anos, a trabalhar com e para a comunidade. “Era e foi sempre o desafio e o caminho, a intervenção numa comunidade vulnerável com necessidades especiais”, destaca.
De sorriso fácil e contagiante, voz imponente, foi e é um dos rostos do ATL da Galiza, aberto em 1983, da Casa Grande (hoje centro comunitário) e da Escolinha de Rugby da Galiza (2006), valências da Santa Casa da Misericórdia de Cascais. “O ATL foi aberto por causa de problemas grandes numa escola primária, para dar resposta a essa intervenção comunitária”, recorda.
O abraço ao projeto da Galiza encaixou no ADN familiar. “Faz e fez parte de toda a minha vida, do meu crescimento e educação, do que recebi como princípios, valores, estar virado para aquilo que nos rodeia”, assume.
O longo caminho não foi, nem é fácil. Admite “momentos de grande privação”, mas o trabalho “numa casa onde havia o telhado, mas faltava muita coisa” deu “nos primeiros 10 a 15 anos a força e as raízes” necessárias para construir um caminho que todos perceberam qual teria de ser. “Não somos donos de nada, mas em comunidade ganhamos essa força”, sublinha.
Nascida numa família ligada ao râguebi, sem espantos, a bola oval começou a circular pela Galiza. “Por um lado, o contacto físico, a questão de medir forças em miúdos de rua, era muito atrativo”, por outro “a disciplina e o autocontrolo”, elenca as razões.
O equipamento azul e branco costuma pincelar torneios e convívios jovens e Maria Gaivão não falta. Parte da missão da Escolinha é “acompanhar e garantir a segurança dos miúdos, porque a maioria dos pais, não tendo carro, não iriam aos torneios. Habituámo-nos a andar com eles (os mais novos) por todo o lado”, graças ao contributo (transporte) da Câmara de Cascais.
Encara a vida no universo Galiza, onde cabe a Mercearia Comunitária e a Casa das Avós, como “uma missão”, mas onde todos “têm de ter o equilíbrio”. Casada, mãe de três filhos e avó de sete netos, coloca a família no topo. “Em segundo lugar, temos a Galiza, e a Galiza obriga-me a isso”, constata.
Aos 67 anos, parar já lhe passou pela cabeça, embora não o faça “enquanto tiver discernimento e fisicamente estiver capaz”, avisa. Gosta de pôr as mãos na massa, mas rejeita o estilo fiscalizador e vê com bons olhos a partilha e passagem de responsabilidades.
“Sei que sou líder, fui líder durante estes anos, mas neste momento estou feliz porque os coordenadores que estão nas áreas, organizam, partilham comigo, já me liberam e posso dedicar-me a outras coisas”, confessa, realizada. Católica, não gasta a palavra dar. “Não dou nada, dou graças a Deus todos os dias, pelo que nos é dado, pela família que tenho e por esta Galiza que amo”.
Embora obra e pessoa se complementem e se justifiquem, volta a rejeitar o protagonismo. “O foco está no caminho, nas pessoas”, aponta. O sonho concretizou-se “porque se acreditou, porque nos juntámos, fizemos em comunidade com os contributos e dons de cada um, e essa é que é a grande novidade no projeto de intervenção comunitária como este”, diz.
Tal como no râguebi, é, e foi, o nós, não o eu, a ser chamado para fazer a primeira página. Uma primeira página que Maria Gaivão, altruísta, dá à Galiza.
Voz das Misericórdias, Miguel Morgado