Os almoços de domingo com a família, os encontros com os netos e os passeios para comprar o jornal são hoje uma miragem, registada em fotografias e memórias rendilhadas. Por quanto tempo?

A solidão mora na casa de Isabel Cigarrilha desde que o centro de dia encerrou em março. Figura franzina e singela, a alentejana de 80 anos passa os dias à espera da visita da equipa do Centro Social da Trafaria. Após o confinamento forçado de março e abril, Isabel quase não falava devido à falta de estímulo e progressão da demência, mas vendo-a “definhar”, as cuidadoras da Santa Casa de Almada resgataram-na da solidão dos dias sem fim à vista. “Quando estou no centro, estou bem. Não me sinto bem sozinha. Tenho saudades de tudo”.

Em casa ou nas estruturas residenciais, milhares de idosos têm a vida em suspenso por causa das medidas de prevenção do novo coronavírus. As equipas reinventam-se para dar resposta às necessidades que aumentam a cada dia que passa, mas a criatividade e dedicação já não chegam para preencher o vazio. Aguardar até quando? Protegê-los a que custo?

O encerramento abruto, a quebra de rotinas e o afastamento da participação na comunidade causaram danos físicos, cognitivos e emocionais, evidentes aos cuidadores que lidam com os idosos no dia-a-dia. Para já, o que se sabe, de acordo com um estudo sobre o “impacto do isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 no bem-estar físico e psicológico de adultos e idosos”, conduzido por uma equipa da Universidade de Coimbra, é que “o período de confinamento obrigatório favoreceu o desenvolvimento de maiores níveis de sintomatologia depressiva, alteração da perceção da qualidade e satisfação com a vida e um acréscimo das queixas de memória”, revelou Sandra Freitas, que lidera a equipa de investigadores do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental.

No terreno, as equipas vivenciam situações concretas de desalento, revolta e declínio de competências cognitivas, funcionais e motoras, para além da enorme sobrecarga física e emocional dos familiares, no caso de utentes impedidos de frequentar os centros de dia.

Numa reflexão intitulada “Que direitos para as pessoas idosas em tempo de pandemia?”, Sofia Valério, diretora técnica do Centro Social da Trafaria (Misericórdia de Almada), destaca as "consequências dramáticas” deste corte abruto com a realidade que todos conheciam e reclama a implementação urgente de “medidas que respeitem os direitos das pessoas idosas, aliando a prevenção da saúde física à promoção e preservação da saúde mental”.

Os utentes de centro de dia, que no início da pandemia ainda tinham capacidade para gerir as atividades de vida diária, já precisam de apoio para sair de casa e estão neste momento a ser institucionalizados porque as famílias percebem que estão a perder competências funcionais. “Nunca fiz tantos pedidos internos para admissão em lar como agora, as famílias dizem que não aguentam e alertam para riscos de queda. Um familiar disse-me que a mãe não morre de Covid-19, mas da cura porque está em prisão domiciliária por tempo indeterminado”, alerta.

De mãos atadas, as direções técnicas dividem-se entre as reivindicações de utentes, que pedem maior liberdade e autonomia, e as orientações da Direção Geral da Saúde, que procuram cumprir à risca, para salvaguardar a saúde dos que acolhem.

“Aquilo que nos preocupa enquanto dirigentes, e reconhecendo que temos de os proteger, é este impacto negativo. Os mais conscientes não percebem porque não podem ser livres como os que vivem lá fora e querem continuar a viver e os demais revelam agitação, instabilidade, confusão, perdas de apetite, mobilidade e declínio cognitivo. Temos de fazer esta gestão diária, entre a reivindicação da vontade dos utentes e as indicações governamentais a que temos de obedecer, sempre no pressuposto de que vamos garantir o bem-estar biológico e em termos de saúde”, atenta Zélia Reis, diretora técnica da Misericórdia da Trofa.

Mas, no final do dia, sentem que fica tanto por fazer e por dizer. Por muito que continuem a “dar tudo”, faltam os sorrisos, o toque humano e a dinâmica própria de um “lugar de vida e não de definhamento e de espera da morte”. A certificação em “cuidados humanitude”, atribuída em 2018, parece hoje um cenário distante quando comparada com as atuais regras de distanciamento, utilização de materiais de proteção e afastamento da família. “Ninguém tem culpa da atual circunstância, mas estamos a matar os nossos idosos aos poucos”, lamenta Zélia Reis.

Os almoços de domingo com a família, os encontros com os netos e os passeios para comprar o jornal são hoje uma miragem, registada em fotografias e memórias rendilhadas. Por quanto tempo? E aquele abraço que ficou por dar? Tantas perguntas sem resposta.

Depois de sete meses, sem alívio aparente das medidas de contenção, a maioria das pessoas começa a ficar impaciente e a perguntar quando pode dar o próximo passo. Em Alijó, a diretora da estrutura residencial conta-nos que apesar do enquadramento paisagístico, em plena região demarcada do Douro, as atividades de animação, jogos, apanha de figos e uvas no exterior já não são suficientes para acalmar essa ânsia. “Tentamos transmitir que amanhã será melhor e vamos criando respostas à medida das necessidades”, revela Alexandra Cardoso.

Na estrutura residencial de Vila Viçosa, Ana Maurício, diretora técnica, revela uma realidade semelhante, com “idosos apáticos, tristes e ansiosos”, confinados ao mesmo espaço desde março, e considera que o maior impacto decorre do “corte e afastamento com as famílias”.

Apesar das visitas, que carinhosamente chamam de “namoros à janela”, a diretora técnica da Misericórdia de Marvão, Filipa Tavares, lembra que no final do dia “voltamos todos para as nossas casas e famílias e eles ficam aqui”. Nesta terra plantada na Serra de São Mamede, o elevado número de residentes obrigou à criação de quatro grupos, dentro do mesmo edifício, o que significa que mesmo dentro do lar estão confinados. Felizmente, o edifício é amplo e tem vários espaços exteriores e claustros (antigo convento franciscano), onde podem passear.

Todos os dias, as equipas reinventam-se para proporcionar momentos de lazer, alegria e esperança através de pequenos gestos com enorme impacto. Há quem faça pão, licores e outras iguarias, quem recolha receitas e tradições de outros tempos, outros levam os utentes ao encontro dos familiares e há quem se lembre de fazer surpresas em datas especiais, como aniversário e bodas de casamento (caso de um casal de utentes de Oliveira de Azeméis).

Na ilha da Madeira, onde as temperaturas são amenas, há uma psicomotricista que insiste no poder do toque, nas caminhadas ao ar livre e na contemplação da natureza. Catarina Fernandes, a trabalhar nos dois lares da Misericórdia da Calheta, assume todos os dias o desafio de levar os utentes ao exterior, com o lema “dar e receber no caminho da vida”.

Começou por desconstruir o medo de sair à rua, incutido após a fase de confinamento obrigatório, criando pequenos circuitos de caminhada dentro do recinto do lar. Hoje, convida a contemplar a paisagem em redor, com plantações de bananeiras e espécies locais. “Sou a terapeuta que mais anda na rua, pego nos utentes e vou lá para fora. Não é preciso inventar imensas atividades, é ótimo reduzir o ritmo e a velocidade e poder contemplar a natureza. Insistir e dar ainda mais valor ao toque, já que pecamos pela falta de expressão facial”, explica.

Depois de meses a fio em casa, o regresso aos rostos e rotinas de conforto é encarado com enorme expetativa. Onde é possível reabrir os centros de dia, a notícia é recebida com um misto de euforia e apreensão. Assim foi em Condeixa-a-Nova, a 1 de outubro. “Vinham eufóricos para reencontrar os amigos e ver o espaço novo, depois das obras de remodelação. Estavam também curiosos para ver como se iam adaptar à mascara e às regras novas. Notei que vinham com grande necessidade de conversar e estar ocupados”, recorda a diretora técnica, Ana Elisa.

A retoma é gradual em todo o país, mas para alguns o amanhã tarda em chegar. Enquanto o vírus não desaparece, agarram-se às memórias que restam, aos ecrãs com rostos distantes e às equipas que se duplicam em esforços. Até quando? Mais um pouco, ouvimos do outro lado. “O amanhã será melhor”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Ilustração: Paulo Buchinho