A Santa Casa da Misericórdia da Covilhã é parceira de um projeto, promovido pela Associação de Desenvolvimento Rural (RU.DE), que pretende recolocar a compaixão na prestação de cuidados aos idosos, criando círculos de entreajuda em torno do idoso e das suas necessidades específicas, com o objetivo de colmatar o isolamento e a solidão.

O projeto Círculo Compassivo de Cuidados, que foi um dos vencedores da segunda edição do Prémio BPI La Caixa Rural, junta três parceiros: a RU.DE, que é a entidade promotora e gestora, a Misericórdia da Covilhã e a Cooperativa de Solidariedade Social Aproximar.

O Círculo Compassivo de Cuidados permite o acompanhamento de 38 idosos, na cidade da Covilhã e na vila do Tortosendo, e o VM acompanhou, por um dia, a equipa que dinamiza o projeto no terreno. Por questões de segurança, todos os nomes dos destinatários do projeto são fictícios.

O dia era de sol e começou com um café na esplanada. É o único café que bebe durante a semana, no dia em que a acompanham às compras. Com o saco na mão e a lista na memória, vai avivando memórias mais longínquas, do tempo em que era metedeira de fios e passadeira nas fábricas de lanifícios da Covilhã. “O meu trabalho era ver se a fazenda tinha defeitos, depois tinha de os tirar antes de estar feito o corte, no fim metia os fios”, lembra. Pelas mãos e pelo olhar de Filomena, hoje com 84 anos, passaram milhares de metros de fazenda: “Via todos os defeitos”.

Além das compras e do café, os elementos da equipa técnica do projeto também acompanham os idosos na ida à farmácia, ao banco, à missa ou às consultas de saúde. Tarefas do dia a dia que acabam por fortalecer os laços entre os técnicos, que conhecem pelo nome, e os utentes, que são tratados como se fossem da família. Na maioria dos casos, acabam por ser a sua companhia mais regular.

Maria tem 80 anos e naquele dia estava a tratar do seu jardim, que é como chama aos vasos onde planta morangos e sarpão, uma erva aromática que não dispensa na carne, no arroz e na sopa de feijão verde que, assegura, “fica com um sabor diferente”.

Tratar dos vasos é abrir a porta das memórias da vida. “Trabalhei sempre no campo, desde que me criei”, conta. Maria sabe todos os segredos da agricultura e conhece bem o calendário agrícola. “Em janeiro semeavam-se as batatas, as favas e as ervilhas”. Conversadora, gosta do dia da visita da equipa: “Conversam, já me levaram à missa, ao posto médico, ao supermercado, à vacina”.

A próxima paragem é na casa de Amélia que nos recebe com abraços e a mesa já preparada para o puzzle que, naquele dia, era de animais. Enquanto junta as peças do cavalo e do sapo, que afinal era uma rã, recorda o dia em que lhe fizeram uma surpresa. “Tocaram à campainha, traziam balões, fitas e o bolo, eu fiz o chá e pus uma lata de bolachas na mesa, foi a primeira vez que tive uma festa de aniversário na vida”, recorda.

Gosta de fazer os puzzles e de todas as atividades em que já participou, como uma sessão de esclarecimento sobre “esta doença que cá anda”. Foi a primeira a chegar e a última a sair. “Aprendemos como lavar as mãos, com sabão chegava, tanto que eu tenho cá azul e cor de rosa e deram-nos uma máscara”, recorda. Interrompe o puzzle, mais uma vez, para ir buscar a fotografia que registou desse dia.

No final, sobrou a coruja. Com o fim do puzzle e o aproximar do almoço já não houve tempo para ver o jardim onde trata as suas flores. Ficou a promessa de regressarmos na primavera.

O dia era de festa para o senhor Joaquim. Debilitado devido a uma doença, é a mulher quem cuida dele. “Na saúde e na doença”, recorda Maria de Lurdes, casada com “este rapagão, há 58 anos”.

De repente, a pequena mesa redonda da sala encheu-se de cor, com o bolo de aniversário ao centro, trazido pela equipa em mais uma visita de proximidade, desta vez, especial. “Foi uma boa surpresa, não estava a contar, o bolo está bom e a festa também”, confessou o aniversariante. A esposa gosta destas visitas. “Vêm sempre ver se preciso de alguma coisa, estou a cuidar dele e não tem sido fácil.”

Mas, o dia era de festa e, à volta da mesa, as recordações foram para outra festa, a do casamento de ambos, na terra da noiva, como manda a tradição, noutro concelho ali perto, Penamacor, com direito a boda caseira que começou uma semana antes.

“Oito dias antes começavam a fazer os bolos e entregavam um prato de arroz doce e bolos na casa das pessoas que, no dia que iam entregar o prato, retribuíam com galinhas, ovos, azeite. Praticamente, os gastos da boda eram só o arroz, o açúcar e as carnes.”

No fundo, o casamento era uma festa que envolvia toda a aldeia durante mais de uma semana. “O meu teve muita fartura, chanfana, coelhos assados, as galinhas torradas nos fornos de lenha, bolos, esquecidos, bolos de leite, biscoitos, cavacas e os borrachões”.

Maria de Lurdes continuava a desfiar o rosário das recordações, como se estivesse a viver o dia. “O bolo da noiva era pão de ló, três andares, barrado de branco com uma flor no cimo”. Uma flor natural que já nem se lembra qual, porque só tinha olhos para o noivo.

E quando recordar esta visita surpresa, provavelmente, vai dizer que o bolo de aniversário era lindo, decorado com frutas, mas não sabe bem quais, porque, passados 58 anos, continua a ter olhos só para o marido.

Não sabemos qual era a flor do campo que encimava o bolo de noiva de Maria de Lurdes, mas eram uns lindos morangos vermelhos que sobressaíam no bolo de aniversário que a equipa preparou, carinhosamente, para o aniversário do senhor Joaquim.

Segundo a coordenadora do Círculo Compassivo de Cuidados, Ana Almeida, há cada vez mais solicitações para este tipo de apoio. “Temos mais 12 idosos que nos pediram intervenção de proximidade, acontece que nós, para alargarmos como entendemos que deve ser, sem pressa, saber ouvir e estar, neste momento, não podemos por não termos o número de voluntários suficiente para fazermos, pelo menos, uma vez por semana, uma visita a cada um dos idosos”, lamenta.

Voz das Misericórdias, Paula Brito