Dança. ‘Miquelina e Miguel’ foi um espetáculo que nasceu da cumplicidade entre mãe e filho. A mãe, que vive com demência, e o filho que encontrou na dança um meio de resgatar a memória do corpo. Despidos de filtros, os dois conectaram-se, já na idade adulta (agora com 62 e 90), em momentos inesperados que escapam ao controlo e perfeição.

Aos 62 anos, o coreógrafo Miguel Pereira contou ao VM que o pretexto do espetáculo, estreado em 2022, foi “conversar para dançar e dançar para conversar” e, a partir daí, construir um “vocabulário que se tornou preponderante nesta história”. Desta forma, redesenharam os papéis que assumiam na relação. “A certa altura, começou a achar que eu era o irmão dela e, no meio da confusão, achei que ela, de facto, tinha razão”, recorda.

Partindo da sua experiência na dança e performance, o artista focou-se na “expressão do corpo, enquanto revelação de emoções” e apercebeu-se que a doença da mãe lhe retirou os filtros e pudores do passado, revelando um “fascínio e prazer pela dança e música”.

Neste processo, apercebeu-se que “todos nós somos uma espécie de arquivo de memórias escritas no nosso corpo, que não passam necessariamente pela verbalização”. Memórias da nossa vivência que se revelam em gestos, sem preocupação com a técnica do movimento. “De repente, há ali um lugar da memória que podemos resgatar a partir destas experiências, libertando-nos do medo da exposição ao ridículo e assumindo a nossa vulnerabilidade, para recuperar a espontaneidade, curiosidade e deslumbramento, que perdemos com o tempo”.

Com o seu próprio envelhecimento, revela que também ganhou liberdade de expressão, “desmontando esse lugar de competência, perfeição e virtuosismo que nos bloqueia, ou seja, sem se preocupar tanto com dançar bem ou mal, mas com a expressão do que estou a sentir”.

Hoje, aos 60 anos, testemunha a passagem do tempo no seu corpo, apesar da “agilidade herdada da mãe”. Além de uma “decadência física” iminente e “medo de perder a memória”, confronta-se com uma sociedade que ainda valoriza muito a “perfeição e juventude eterna”. 

Ana Cargaleiro de Freitas, Voz das Misericórdias