Chegamos ao Fórum da Maia, marcavam os ponteiros do relógio 16h30. Cá fora, apesar da chuva intensa, várias pessoas, abrigadas da intempérie debaixo de um coberto, aguardavam a abertura das portas do anfiteatro. A reportagem do VM avança para o interior da sala onde o maestro e os utentes do Centro Comunitário de Vermoim afinam as vozes e dão os últimos retoques para o concerto do Holograma. Nota-se o entusiasmo, não fosse esta uma oportunidade única: atuar perante uma plateia, num dos espaços culturais mais conhecidos da cidade.
Às 16h50, o maestro manda toda a gente para os bastidores. É preciso vestir a indumentária festiva. Entretanto as portas do auditório abrem-se e, os espectadores, maioritariamente familiares, começam a acomodar-se.
Quase com pontualidade britânica, ecoam os primeiros acordes musicais e, um a um, os quinze utentes entram em palco, cada um deles proferindo uma mensagem: amar, unir, encantar, rezar, dançar, cantar, cultivar, florescer, educar, ajudar, viver, inovar e unir foram algumas das expressões pronunciadas. Todas as palavras exprimem a vontade de construir uma sociedade mais inclusiva.
Ao longo de aproximadamente 50 minutos foram muitas as canções interpretadas. Umas adaptadas ao cancioneiro maiato, outras, que o público também ajudou a cantarolar, numa interação gerada pelos “ilustres artistas”.
As letras estavam todas na ponta da língua embora todos tenham partido do zero, revelou ao VM o maestro António Miguel, que acumula também funções como responsável do coro da instituição da Maia. “Todas as letras e músicas foram especificamente elaboradas pelos utentes e pela equipa formadora da Casa da Música, pegando em canções tradicionais da Maia e adaptando-as para este espetáculo”, explicou.
Beethoven, encarnado por António Miguel, foi o compositor “convidado” para o concerto. Nos dias que antecederam a subida ao palco, os utentes, através do serviço educativo da Casa da Música, ficaram a conhecer, de forma sucinta, a vida e a obra de um dos compositores mais respeitados e influentes de todos os tempos.
Nos primeiros ensaios, os utentes “sentiram-se pouco expansivos e muito retraídos”, mas à medida que as horas avançavam e os sons iam entoando, “começaram a soltar-se até que, uns, puxavam pelos outros”, conta Lilian Raquel, da direção musical. “Este acaba por ser um projeto de apoio entre eles e os mais autónomos auxiliam os menos funcionais”, sublinha.
Este tipo de programas ocupacionais “são importantíssimos para promover o bem-estar e colmatar a solidão em que as pessoas se encontram, com todas as consequências inerentes, quer na saúde física quer na saúde mental”, considera Mário Figueiredo, coordenador do centro comunitário.
“O mais importante é tratar-se de um projeto inclusivo”, realçou Olinda Cruz, 84 anos e uma das vozes que encantou a plateia. Esta utente do centro comunitário está habituada às lides artísticas. Já fez teatro na universidade sénior, cantou em vários coros e atuou algumas vezes na Casa da Música através de outros projetos. “Esta foi uma ótima experiência e estou aberta a outras”, confidenciou.
Virgínia Sousa, 71 anos, não conseguiu estar presente em todos os ensaios por se encontrar fora do país, mas “a boa vontade e a alegria fizeram o resto” adiantou, acrescentando que também já atuou algumas vezes na Casa da Música, “mas este projeto foi de outra dimensão”, confessou.
A empatia que se cria entre todos, incluindo os músicos, “é incrível”, assegura o maestro. Uma das lições principais “é dar oportunidade a estas pessoas de aprenderem algo de forma educativa e em conjunto, num processo inclusivo que lhes proporciona bem-estar e confiança. “Quando estavam a compor as letras das músicas, alguns já diziam em tom de brincadeira: “nós também somos compositores”. São mesmo, acrescenta Lilian Raquel.
Há talentos escondidos que se revelam. Um dos participantes elaborou uma letra em casa que veio a encaixar na música que tinha sido preparada. “Isto demonstra a dedicação ao projeto”, sustenta o maestro.
Para Mário Figueiredo, este projeto em concreto mostra que o acesso a bens culturais considerados mais elitistas não deve direcionar-se apenas para pessoas de um estrato social mais elevado. “A música é uma só e disponível para todos os ouvidos”, frisa.
Voz das Misericórdias, Paulo Sérgio Gonçalves