Entre julho e setembro, os idosos do lar da Misericórdia de Seia passeiam pelas suas aldeias para matar saudades e renovar o ânimo

Era o primeiro dia de outubro e o último passeio da época para os utentes da Santa Casa da Misericórdia de Seia, onde os meses de julho, agosto e setembro são aproveitados para passear.

Passeios emotivos pelas aldeias e terras de origem de cada um, passeios mais longos, em que o destino Fátima é sempre o eleito, e passeios curtos que fazem regressar os utentes à vida ativa. “Vão dois ou três de cada vez, consoante as necessidades deles, vão ao supermercado, aos correios, à pastelaria, às compras, para continuarem a fazer as suas coisas e a terem uma vida ativa”, explica Telma Teixeira, psicomotricista na Misericórdia, que naquele dia era motorista e guia do nosso passeio. Telminha para os utentes, um carinhoso diminutivo que explica a confiança que depositam na sua condução, a cumplicidade nas brincadeiras e a partilha das memórias de outras viagens.

“Dona Isabel, lembra-se quando veio uma onda e a molhou toda na praia? – Questiona, desafiando a memória da Dona Isabel, que responde com uma sonora e contagiante gargalhada. “Veio uma onda e molhou-me toda”.

Além do divertido episódio na Marinha Grande, lembram-se de saborear os ovos moles em Aveiro, do museu dos relógios em Viseu, da prova dos vinhos, queijos e enchidos “lá mais para o Norte”, e Fátima, onde, no ano passado, depois da missa e do almoço visitaram o museu. “Havia lá tanto ouro”.

E foi assim a conversa durante os nove quilómetros que separam a Misericórdia de Seia da Lapa dos Dinheiros, onde Irene Oliveira nasceu, teve quatro filhos e viveu toda a vida. Uma longa vida de 93 anos, o último dos quais no lar da Misericórdia. 

Começou a chorar ainda antes da viagem e as lágrimas acompanharam-na durante todo o percurso. À chegada, ia indicando o percurso à Telminha. “Mais acima, é essa aí branca a casa do meu filho”. Mas como casas brancas era o que por ali não faltava, foi mais específica: “a que tem os verdes”, afirmou, referindo-se ao gradeamento.

Na rua de S. José, reconheceu logo a nora e chorou quando viu o filho através do vidro da carrinha porque o tempo ainda não é de abraços, mas o dia era de emoções.

“Para diante”, dizia a indicar o caminho, reconhecendo cada rua. Chegados ao Largo D. Dinis, Irene Oliveira tinha uma comitiva à sua espera: a irmã, a vizinha, a sogra da filha, a comadre, a amiga. A Lapa dos Dinheiros ficou lavada em lágrimas. 

E à semelhança de outros tempos, à soleira da porta, as conversas começaram a fluir, como cerejas. Um dos temas era o nome da terra. “Passou por cá o D. Dinis, nos tempos muito pobres, mataram-lhe um bezerro e fizeram-lhe uma grande festa, depois batizou-a, aqui deve haver muito dinheiro, vai ser Lapa dos dinheiros, os nossos antigos contam que foi D. Dinis que batizou estas terras todas.”

A vizinha recorda o tempo em que ia levar a Sagrada Família à casa da D. Irene. “Antigamente cada bairro tinha uma que andava de casa em casa, durante todo o ano”.

Entre uma e outra memória, chegámos à casa da Dona Irene, onde a filha a esperava. Lavada em lágrimas apontou para a sua casa: “a minha casinha”. As saudades que Irene Oliveira já tinha da sua casinha, mas não só “da minha terra, porque tenho uma fazenda ali em baixo, onde semeava batatas e milho e novidades”, que é como quem diz, as culturas da época.

“Com estas saídas às aldeias deles, trabalhamos as reminiscências, algumas pessoas com demências souberam indicar onde era a casa, a escola, a capela, a rua, o bairro.” São passeios sempre emotivos, porque mexem com as memórias, as vivências, os laços de família, as emoções.

Depois do passeio pela aldeia, a próxima paragem é na praia fluvial para apreciar a paisagem à volta de um ligeiro lanche. Durante o percurso pela serra, pedem à Telminha, em jeito de brincadeira, para parar porque o tempo está bom para apanhar míscaros. “Era o conduto para muita gente, um arroz só com míscaros era uma maravilha, ainda hoje é.”

Telma Teixeira volta a avivar a memória à Dona Irene e pergunta-lhe sobre o festival dos bosques, por altura da castanha, onde há magustos e música ao vivo. Foi música para os seus ouvidos: “Ai, isso é que era!”

Entre a água fresca e cristalina da praia fluvial e o verde da serra, que ainda não tinha vestido as cores de outono, respiram ar puro. “Nós estamos bem no lar, mas também é saturante, aqui vimos buscar ar puro.”

De pulmões e alma cheia, a viagem de regresso é feita pela cidade de Seia onde a Dona Isabel recorda o sítio onde, antigamente, havia um velho tear. “Estava em exposição, já não havia daqueles.” Foi urdideira e lá ia explicando como urdia as teias para os teares. “Temos que contar os fios, depende se é um xadrez, é um trabalho minucioso, é preciso ter cuidado para não nos enganarmos”. E hoje, ainda era capaz de urdir uma teia? “Se me dessem material, a ver se eu não era capaz”.

Mas esta não foi a única memória que o passeio por Seia avivou. À passagem pelos correios, a Dona Isabel recordou ainda o seu quiosque verde “ao pé do Grémio”.

De memória em memória, a manhã e o passeio foram passando. Adoram viajar de carro, “uma vez fomos ao Douro, mas não conseguimos fazer a travessia de barco, fizemos a travessia de autocarro, à beira do rio, e eles disseram que queriam fazer outra vez. Só sair, passear de autocarro, já é bom, é sair da rotina, veem coisas diferentes, que não tiveram oportunidade de ver enquanto estavam na vida ativa.”

Nos meses de julho e setembro, dois dias por semana, fazem estes passeios pelas aldeias, param para matar a fome e a saudade e regressam com outro ânimo ao lar. “Vamos lá ver do almoço, hoje é peixe cozido, de certeza!”

Voz das Misericórdias, Paula Brito