Quatro em cada dez idosos não recebe visitas no lar da Misericórdia de Vendas Novas, por motivos financeiros, de saúde e logísticos dos familiares. O cenário repete-se noutros pontos do país. Em Vendas Novas, a equipa técnica está atenta ao impacto do fenómeno no bem-estar dos idosos e concebeu um projeto que promove o reencontro com as famílias e terras de origem, em sintonia com uma estratégia de reaproximação e responsabilização dos familiares na vida diária dos utentes. O VM acompanhou a estreia do projeto ‘Aconchego’ e registou a intensidade de emoções num dia frio de janeiro.

“Poucas coisas são tão gratificantes quanto receber os beijos, o sorriso e o aconchego das pessoas que amamos quando retornamos a nossa casa”, justificou a diretora técnica, Jaciara Oliveira, no guião do projeto que saiu do papel no início de 2023. Com esta ideia em mente, definiram como objetivos das visitas o reforço dos laços afetivos, a promoção de uma relação saudável com as famílias e a prevenção de sentimentos de abandono e solidão.

Inácio Garcia, 62 anos, foi o protagonista do primeiro reencontro surpresa organizado pela equipa. A residir no lar há um ano, o alentejano natural de Moura concretizou neste dia o desejo há muito formulado: rever a companheira que deixara em Reguengos de Monsaraz.

A surpresa foi guardada até ao último instante, denunciada pelo olhar cúmplice da diretora técnica, animadora e motorista, ao embarcar na carrinha da instituição. Inácio julgava ter uma consulta em Moura. “É tão bom fazer o bem. Por eles fazemos o impossível e guerreamos para o conseguir”, confidenciou-nos Jaciara Oliveira durante a viagem, sem esconder o amor pela causa que dá sentido à sua vida. “O segredo é trabalhar naquilo que gostamos ou então somos profissionais medianos, não somos plenos. E o que me dá sentido a mim são os idosos”.

No banco de trás, o rosto de Inácio perde-se na paisagem que se desenrola diante do olhar. A contemplação serena é interrompida apenas para responder a interpelações da equipa. Nada faz antever a emoção que vai viver dentro de instantes.

Os 95 quilómetros que distam as duas localidades estão agora reduzidos a uma estrada de sobreiros. Na fila da frente, sentimos um sobressalto ao ver o nosso destino numa placa: Reguengos de Monsaraz. “Tio Inácio, que terra é essa? Veja lá se conhece”. Do outro lado, o rosto enevoado ilumina-se: “Já estou vendo! Ah ah ah! É por aqui!”. Desvenda-se finalmente o mistério. Seguimos as suas indicações, por um labirinto de ruas que só ele conhece.

Ao descer da carrinha, o céu abre-se para deixar passar um raio de sol e os vizinhos reconhecem-no, divertidos: “Vieste fazer uma surpresa à velha!”. Num passo acelerado, Inácio responde ao aceno e explica enquanto contorna o edifício: “É a minha filha [enteada] Marta”.

No topo das escadas, o corredor leva-nos à cozinha e zona de estar da sua antiga casa. Maria do Céu surge da sombra e reage ao ver o rosto conhecido: “Ah que boa surpresa! Entraram pela porta adentro e eu não te conhecia. Estás muito mais bonito!”, elogia a figura franzina, de 73 anos, ao constatar as melhorias no estado de saúde do companheiro.

Após um ano apartados, o aconchego de um abraço sossega a tristeza. O reencontro dá-se entre lágrimas, beijos e sorrisos. “O sonho dele era revê-la. Todos os dias pede para lhe telefonar. Gosta muito dela. E ela dele. E para nós, o mais importante é o amor, os laços e a vontade do reencontro”, revela nos bastidores Jaciara Oliveira.

Desde que chegou ao lar, em 2018, a técnica especializada em psicogerontologia e serviço social implementou algumas mudanças para aproximar as famílias dos utentes e devolver a alegria aos idosos. “Todas as semanas ligo aos familiares e pergunto a que horas vem visitar, não pergunto se vem visitar e isto coloca pressão e responsabiliza a família”. O acompanhamento a consultas e serviços de saúde passou também a ser assegurado pelos familiares, exceto em casos muito pontuais. “Quando não há mesmo ninguém, vamos nós. A instituição não pode nunca substituir a família”.

Outra visão que tenta contrariar na sua prática profissional é a dos lares como “depósitos”. Para a diretora técnica, os lares são lugares cheios de vida e histórias memoráveis. Num país de velhos, como o nosso, defende a necessidade de “cuidados diferenciados que assegurem qualidade no envelhecer. Eles estão aqui para viver. Será que é a última fase da vida? Eu posso morrer primeiro que eles. É uma fase. E até pode ser a melhor da vida deles”.

Ana Cargaleiro de Freitas, Voz das Misericórdias