O caminho trilhado ao longo de séculos pelas Misericórdias portuguesas não tem sido fácil. Os problemas do passado somam-se com os do presente e o futuro revela-se, na maioria das vezes, uma incerteza. Porém, “as Misericórdias vão cá estar para o resto da vida porque têm raízes, resiliência e readaptação”. É esta a convicção de José Simões de Almeida, antigo secretário de Estado da Solidariedade e Segurança Social, que marcou presença, no passado dia 31 de maio, na conferência “(Des)construindo o papel das Misericórdias: desconstruir mitos para construir o futuro”, que se realizou no âmbito das comemorações do 520º aniversário da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira.
Presentes no Auditório Municipal de Albufeira estiveram, além de provedores e técnicos das Santas Casas, académicos, autarcas e representantes de organismos públicos. A debaterem-se com problemas como sustentabilidade, demências e envelhecimento, as Misericórdias enfrentam grandes desafios aos quais é preciso saber dar respostas sociais adequadas.
Para Jorge Botelho, presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), não há dúvida que o futuro das Misericórdias passa pela aposta na qualidade, implementação de projetos, inovação, parcerias, cooperação e no envolvimento da comunidade civil. Partilhando da mesma opinião, Patrícia Seromenho, provedora de Albufeira é perentória: “os tempos evoluem e as respostas têm de ser outras. Todos nós somos responsáveis por promover essa mudança” e o trabalho faz-se “lado a lado”.
Mas, como escreveu o poeta castelhano António Machado, o caminho faz-se caminhando, e as mudanças não se fazem de um dia para o outro, há que mudar primeiro mentalidades. Michael de Pina Batista, provedor da Santa Casa de Penalva do Castelo e um dos mais jovens do país, acredita que o grande desafio “é mudar cabeças”.
Esse paradigma, continuou, “está formatado e estagnado nalgumas rotinas que ensombram as organizações. Criamos estratégias e projetos, mas depois esquecemos que temos de dar seguimento às iniciativas.” Esta Misericórdia do distrito de Viseu conseguiu vencer o estigma do interior promovendo ideias inovadoras que vão ao encontro do interesse da população. Nos últimos seis anos duplicou o número de postos de trabalho e aumentou salários.
Proximidade, a chave do futuro
Portugal é o terceiro país mais envelhecido da Europa. Numa população de pouco mais de 10 milhões de habitantes, 21,3% têm 65 ou mais anos. A melhoria das condições de vida das populações trouxe consigo uma maior esperança média de vida e os desafios que se colocam às Misericórdias têm de ir ao encontro dos interesses e das necessidades das populações.
Para José Simões de Almeida, “a lógica tem que ser proximidade e parceria. Proximidade entre as instituições que estão no terreno e as pessoas, proximidade entre as várias instituições de solidariedade social e proximidade com as instituições do Estado que estão no poder local. É dessa proximidade que devemos falar para construir o futuro”.
“O caminho é cada vez mais um envolvimento da sociedade civil, das câmaras e do poder regional, qualquer que ele seja”, completa Jorge Botelho, defendendo a importância da regionalização como instrumento essencial para facilitar e agilizar algumas respostas sociais. Porque o repto lançado às Misericórdias, que lidam de perto com o envelhecimento, é terem capacidade de investir cada vez mais na qualidade de vida das pessoas nos anos finais e para isso é essencial mudar políticas. “As políticas de descentralização são seguramente menos Estado central, mais Estado local, regional e muito mais sociedade civil. Hoje os lares institucionais, como existem ainda muitos, já não são a resposta adequada para os idosos que lá estão”, defende Jorge Botelho.
Um território dividido
Na conferência comemorativa dos 520 anos da Misericórdia de Albufeira ficou bem vincada a ideia de que Portugal tem assistido nos últimos anos a uma profunda transformação demográfica. Como realçou Helena Freitas, professora catedrática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, “temos um país que é globalmente desequilibrado e que, tendencialmente, parece estar a continuar a apostar em sê-lo. Um terço dos portugueses vive em dois terços do território e dois terços vivem num terço do território”.
Por isso, Helena Freitas defende um maior investimento no interior do país ao invés do que tem sido feito. “Nas últimas décadas o Estado optou por retirar serviços públicos e ao retirá-los condenou ainda mais estes territórios.
E questiona: “O que temos hoje neste vasto território a que chamamos interior”? A resposta é, no seu entender, evidente: “baixa densidade populacional, cuja tendência é para aumentar, níveis críticos de infraestruturas e serviços, fraco empreendedorismo e investimento privado, baixa oferta de emprego, forte emigração e envelhecimento”. E, claro, “sem emprego, sem atividade económica, não conseguimos ter nestes territórios soluções que os revitalizem, porque os jovens, e todos nós, somos seduzidos pela urbanidade”, acrescenta.
Não é de estranhar que as Misericórdias sejam, nas localidades do interior, a segunda maior entidade empregadora, logo a seguir às câmaras, sendo em alguns casos a primeira, dado que o trabalho que fazem é essencial para o desenvolvimento territorial e, por isso, devem, segundo Jorge Botelho, “encontrar soluções ou encaixar ideias inovadoras para poder dar resposta às populações”.
Respostas que passam por um maior envolvimento com a sociedade civil. “Temos de trabalhar em conjunto, fazer com que haja rentabilidade daquilo que são as propostas sociais das instituições”, defende o presidente da AMAL. Para Helena Freitas “o Estado deve procurar também com a sociedade civil, com a iniciativa privada, modelos de organização nestes territórios que respondam em primeiro lugar às pessoas”, e reconhece que “isto é, absolutamente, essencial”.
Parceiros adequados para este desafio são as Misericórdias que, segundo Fernando Cardoso Ferreira, vogal do Secretariado Nacional da UMP, “são instituições que fixam gente, promotoras de coesão e de dinamização das atividades económicas locais”. Voz das Misericórdias, Nélia Sousa