Na frente ribeirinha da vila de Alcochete, há segredos que resistem ao tempo. Um deles é a Igreja de Nossa Senhora da Vida, edificada na segunda metade do século XVI e reaberta ao público no final de 2023, após obras de requalificação financiadas pelo Fundo Rainha Dona Leonor (186 mil euros) e Misericórdia de Alcochete, no valor total de 330 mil euros.

Após “incansáveis tarefas”, ao longo de mais de quatro anos, a provedora congratulou-se com o resultado desta empreitada, mas admitiu ao VM a sua preocupação com os encargos decorrentes da reabilitação e manutenção do edifício. “Foi para a anterior Mesa Administrativa uma deliberação difícil, discutível, mas corajosa perante os encargos financeiros assumidos com enorme esforço face aos parcos rendimentos da instituição”, proferiu no discurso de inauguração, a 9 de dezembro de 2023. Maria Manuela Boieiro lamentou ainda a falta de apoio financeiro do município na recuperação de uma capela “cujo valor histórico é indiscutível e faz parte da memória coletiva dos alcochetanos”.

O início da obra gerou surpresa entre a população, que reagiu com “admiração e esperança porque a capela está muito ligada à sua vida”, constatou a provedora. Dois dias após a inauguração, as portas abertas chamaram a atenção dos habitantes que pediram para entrar e conhecer o espaço. “Moro cá há tanto tempo e nunca vi esta igreja aberta. Está muito bem, gostei de ver. Muitos parabéns!”, exclamou uma alcochetana, que mora nas redondezas, na companhia de uma vizinha de 75 anos que “mora aqui há 60 anos” e só hoje a viu por dentro.

O edifício, classificado como monumento nacional em 1996, foi construído em 1577 por um médico de Alcochete, Afonso de Figueira, e a sua mulher, Júlia de Carvalho, que se encontram sepultados junto ao altar-mor e doaram o templo à Misericórdia. No século XVII, esta antiga ermida, de invocação ao Espírito Santo, passa a designar-se de Nossa Senhora da Vida, por influência de Nuno Álvares Pereira, e em 1758 as paredes da nave foram revestidas por azulejos, com representação de cenas da vida da Virgem, adquiridos a um azulejador de Lisboa.

A requalificação deste conjunto azulejar foi uma das tarefas mais exigentes em todo o processo devido à falta de azulejos e condições ambientais do local. “Faltavam 80% dos azulejos originais e o salitre e a humidade faziam saltar os azulejos. Quinze dias depois de os fixarem estava tudo caído no chão”, recordou a provedora, louvando a competência e dedicação da equipa que zelou pela conservação deste património histórico desde o telhado, aos altares, cúpula, paredes e azulejos. “Expressamos a todos vós o nosso apreço e reconhecimento”, reconheceu na cerimónia de inauguração.

Em relação ao horário de visitas e eucaristias, que suscitou muitas perguntas da comunidade, a provedora esclareceu que o objetivo, a médio prazo, é abrir portas para eventos culturais, casamentos e batizados da comunidade, em função da disponibilidade do pároco local.

Apesar da satisfação por ver o templo imaculado e repleto de visitantes, a provedora não esconde a sua preocupação com a manutenção do edifício, que se encontra a poucos metros do rio. Por enquanto a responsabilidade compete exclusivamente à Misericórdia de Alcochete, que contraiu um empréstimo bancário no valor de 140 mil euros para fazer face a estas despesas, mas Maria Manuela Boieiro considera que a “responsabilidade de cuidar destes monumentos que fazem parte da história de um povo devia competir também ao Estado”.

Na mesma frente ribeirinha, localiza-se a igreja da Misericórdia e respetivo núcleo de arte sacra, cuja gestão está a cargo do município, e mais adiante o Lar Barão Samora Correia, onde funcionam as respostas sociais de centro de dia, estrutura residencial, apoio domiciliário e cantina social. A este património, juntam-se alguns imóveis, uma herdade e duas antigas salinas, com rentabilidade reduzida. “Antigamente, o sal era ouro branco e a Misericórdia era próspera, mas deixámos de explorar no final dos anos 1960, devido a uma opção nacional de passar a importar sal, e hoje as duas marinhas são exploradas por uma empresa de aquacultura”, lamenta.

 

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas