No segundo testemunho, a diretora coordenadora técnica da Misericórdia de Almada, Sofia Valério, reflete sobre os problemas e soluções que todos os dias se procuram equilibrar numa frágil “dança do limbo”.
"Praticantes da dança do limbo
Há uns anos, por esta altura, uma das nossas respostas sociais lembrou-se de oferecer a todas as famílias e colegas da instituição um frasco decorado, para recolha de desejos e promessas para o ano seguinte. Explicava-se nas instruções que o frasco, que não era pequeno, deveria ir recebendo, em papelinhos dobrados em quatro, as ditas formulações sobre sonhos de dias melhores e empenhos pessoais comprometidos, e que findo o ano poder-se-ia abrir e ler cada um, para recordar pedidos provavelmente já esquecidos, verificar a sorte arrecadada e renovar os almejos para a jornada seguinte.
Se este jornal fosse esse frasco, seria só um, seria nosso e representativo de todos os problemas que sentimos nas nossas organizações, das soluções que fomos encontrando, de forma criativa e inovadora, mas tantas vezes exasperada, por se ter de relembrar repetidamente responsabilidades a quem as tem e nem sempre as assume, na medida a que está obrigado.
E nós, nas Misericórdias, parecemos em 2023 praticantes da dança do limbo, aquela cujo o objetivo é passar debaixo de uma barra baixa enquanto nos inclinamos para trás, sem cair ou encostar na barra. A barra desceu muito, mas passámos. Só que não foi fácil, foi por vezes à custa das nossas provisões, o que não foi justo. Os motivos todos conhecemos: o aumento do custo de vida, das matérias-primas, dos combustíveis, o aumento dos salários e a sua desproporção face às contrapartidas do Estado, entretanto compensada em certa medida, mas insuficiente.
A sustentabilidade financeira foi um desafio, contrabalançado pela sustentabilidade da missão cumprida. Assumimos responsabilidades no atendimento e acompanhamento social das famílias vulneráveis da maior parte dos territórios do concelho; alargámos a resposta de creche; desafiámo-nos a pôr em causa a nossa prestação de cuidados, içámos a bandeira dos cuidados em humanitude e centrados na pessoa; apostámos numa nova geração de cuidados no domicílio; afirmámos o nosso papel como agentes de desenvolvimento local, na animação dos territórios, no emprego e empreendedorismo; desmontámos o conforto da prática consolidada da intervenção social e comunitária, e lançámo-nos em novas propostas. Mudámos de imagem, comunicámos melhor, renovámos parte da frota automóvel através de investimentos apoiados, ecologicamente sustentáveis. Candidatámo-nos a prémios, ganhámos alguns. Reunimos toda a nossa Santa Casa, olhámos para dentro e para o mundo, e planeámos o futuro, num horizonte estratégico de sete anos.
Aqui chegados, erguemos a 2024 o brinde da esperança e dizemos presente. Adivinhamos dificuldades em cada travo das dozes passas. Contamos com as nossas equipas.
Desejamos mais recursos, mais cooperação e menos dança do limbo."
Voz das Misericórdias, edição de dezembro de 2023