Cinquenta pessoas aceitaram o desafio da Misericórdia de Barcelos e fizeram-se ao ‘bom caminho’ até Santiago de Compostela

Até chegar a Santiago de Compostela, um peregrino perde a conta ao número de vezes que ouve a expressão “bom caminho!”. Duas palavras que todos aprendem a pronunciar, independentemente da nacionalidade. E são muitas. O Caminho Português é atualmente o segundo mais percorrido para rumar a Santiago de Compostela e movimenta todos os anos perto de 70 mil pessoas. Em 2019, os números ultrapassam os de 2018, ascendendo aos 70 mil, apenas de janeiro a outubro (Oficina de Acogida del Peregrino).

Este ano, um grupo de 50 peregrinos da Santa Casa da Misericórdia de Barcelos escolheu o trajeto antigo que cruza bosques, terras de cultivo, aldeias e cidades históricas para rumar ao sepulcro do apóstolo Santiago, o Maior. Duzentos quilómetros de viagem, divididos em oito etapas, que reuniram, nos mesmos trilhos, irmãos, colaboradores, familiares e mesários, entre os 20 e 72 anos de idade. O VM juntou-se aos caminhantes na última etapa, a 26 de outubro, e testemunhou a entreajuda, a fé e o misto de emoções que só os peregrinos conhecem.

“Quando a ideia surgiu nunca pensei que fossemos ter mais de 20 pessoas, mas a Misericórdia mobilizou-se em peso. Tivemos colaboradores das pessoas idosas, da infância, saúde, serviços partilhados, familiares e mais de meia mesa administrativa. Cada um de nós viveu o caminho de forma muito pessoal, por razões espirituais ou pelo desafio que representa, mas a verdade é que 200 quilómetros depois estamos, pelo menos, mais conhecedores uns dos outros”, observou o provedor Nuno Reis, num balanço feito após a chegada ao destino.

Seja qual for a motivação de quem se faz ao caminho, a vontade de superar distâncias e desafios une todos ao longo da jornada, experientes ou peregrinos de primeira viagem. Ainda é noite cerrada quando nos encontramos diante da igreja, fechada para obras de requalificação. O relógio marca 04h15. Alguns não pregaram olho com medo de perder a hora, mas a boa disposição não vacila. “Sabíamos que vinha hoje por isso adiantámos cada vez mais a hora de partida”, brinca o mesário Jorge Cruz Amaral. Justifica-se, de seguida, explicando que, devido ao cansaço, os peregrinos costumam levar mais tempo nas etapas finais.

Todos ocupam os seus lugares no autocarro da Misericórdia de Barcelos que nos levará até Padrón, antiga cidade romana e, mais tarde, sede episcopal até ao século XI. A vila galega conhecida pelos “pimentos padrón” serve de ponto de partida da última e derradeira etapa.

A poucas horas de chegar a Santiago, os peregrinos já fazem planos para a próxima aventura. Fátima, Finisterra e Sistelo são algumas das opções apontadas. “Isto vai deixar saudades, mas vamos arranjar já maneira de encaixar outra. Faz falta esta convivência”, comenta a coordenadora de infância, Cláudia Faria.

Esta iniciativa integra-se numa estratégia global de valorização dos recursos humanos, iniciada pela nova mesa administrativa em janeiro de 2019, que prioriza a autonomia, flexibilidade e mérito dos colaboradores. O novo projeto de gestão foi apresentado no encontro anual de colaboradores, em junho deste ano, e vai culminar na criação do Gabinete das Pessoas.

Fora das quatro paredes, as caminhadas têm ajudado a estreitar laços entre colegas que não se cruzam na azáfama diária. “Eu trabalho na Santa Casa quase há 30 anos e não conhecia a maior parte das pessoas de outros setores. É uma forma de nos conhecermos melhor”, confessa Fátima Simões, auxiliar de ação educativa no Infantário Rainha Santa Isabel.

De volta ao caminho, o tédio não mora entre a equipa da infância, que segue a meio do “pelotão”, como lhe chamam. Entre conversas e cantorias, os primeiros seis quilómetros fazem-se sem esforço, por entre as vielas que misturam antigas habitações em pedra com outras mais recentes. “Ó Laurindinha, vem à janela, ver o teu amor, ai ai ai que ele vai p’ra guerra”, entoam.

Fazemos a primeira pausa junto ao santuário d’A Escravitude, nas imediações de Padrón. Das pequenas mochilas carregadas às costas começam a surgir rissóis de leitão, bolinhos de bacalhau e petiscos variados em quantidades surpreendentes. “Esta é uma particularidade desta peregrinação, há pessoas que trazem bolachas, barras energéticas e fruta, depois há quem traga bolinhos de bacalhau, rissóis e panados”, conta o provedor entre risos. Para aquecer o corpo, os petiscos são regados com vinho do Porto, servido com moderação que, segundo os mais experientes, “aquece e acelera o passo”. “A los camiños!”, brindam todos.

Durante os primeiros quilómetros, os passos sucedem-se a bom ritmo, mas quase a meio do percurso os marcos de pedra parecem congelar as distâncias. “Ali estão os quilómetros que faltam para Santiago. São 18”, explica a vice-provedora Manuela Dantas. A mesária tem 70 anos, mas a agilidade de uma jovem. Não tem pressa em chegar ao destino, prefere desfrutar da experiência ao seu ritmo, com a ajuda de um bastão para as descidas. “Isto é formidável. Eu costumo dizer, isto é um caminho de fé, não é? Se vamos a Santiago é porque temos fé e vamos conseguir chegar, se Deus quiser”.

Quando o caminho nos parece demasiado longo e sinuoso, um rosto conhecido surge ao nosso lado e arrebata-nos com novo fulgor. Humberto Simões, marido de uma colaboradora da infância, assume essa missão com particular empenho, com as suas brincadeiras de “mandar construir casas e plantar árvores para fazer sombra” aos que sofrem nos dias de calor intenso. “Eu não tinha noção do que é caminhar ao lado de outras pessoas, uns com mais força, outros com mais dificuldade, mas há dois anos quando fui a Fátima vi pessoas com doenças e chagas nos pés e pensei ‘se eles vão mal, eu também vou’. O meu lugar é ali atrás com eles”.

Concluída a “caminhada de renovação, transformação e fé”, assim descrita pela organização, os peregrinos trocam o passaporte carimbado nos vários locais de passagem por uma credencial designada de “Compostela”, que comprova a chegada a Santiago. Para obter o documento, na Oficina do Peregrino, é necessário percorrer, no mínimo, os últimos 100 quilómetros a pé antes de Santiago, ou 200 no caso de seguir de bicicleta.

Quase todos os peregrinos de Barcelos regressam a casa com a Compostela e o espírito renovado. Para o provedor Nuno Reis, um dos mais jovens do país, “os caminhos são provavelmente uma das metáforas mais perfeitas da vida. Todos passamos por momentos mais difíceis, em que o desânimo se apodera de nós e achamos que não vamos conseguir chegar ao fim, mas neste caso em concreto foi alguém conhecido que nos animou a prosseguir, nos deu a palavra e o alento que nos fez continuar a caminhar”.

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Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas