A história das Misericórdias é feita de heranças e doações ao serviço das populações. Gestos protagonizados por homens e mulheres que perpetuam a sua memória em retratos, documentos e equipamentos. Entre os doadores, prevalecem os homens, mas os historiadores destacam o papel decisivo das mulheres, ao longo dos séculos, numa estrutura de hierarquias masculinas. Como contrapartida, os benfeitores pedem que se cuide dos jazigos da família, que se reze missas pela sua alma ou se preste assistência a órfãos, viúvas e outros. O VM foi conhecer algumas destas figuras, no mês em que se assinala o Dia Internacional da Mulher.

Recuando no tempo, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) lembra que “as doações estão intimamente ligadas à natureza básica das Misericórdias”, estando na génese de muitas instituições e equipamentos. Segundo Manuel de Lemos, “a história das Misericórdias mais antigas é feita à volta das doações e o Estado Social, de alguma maneira, vem pôr fim a essas doações, porque as famílias acharam que não era preciso e que o Estado tratava delas quando fosse necessário”, recorda.

Segundo o Gabinete de Património Cultural (GPC) da UMP, cerca de 230 Misericórdias têm galerias de retratos, número que inclui benfeitores e provedores. A memória destes doadores perdura em fontes documentais, retratos pintados, bustos e placas evocativas, sendo esta a “forma das Misericórdias expressarem o reconhecimento para com os seus beneméritos, muitas vezes membros das elites locais”.

Ainda pouco estudado, o fenómeno reflete manifestações de fé e relações de poder, mas também a confiança depositada nas Misericórdias, já que, segundo a historiadora Maria Antónia Lopes, havia a “preocupação de doar a instituições de prestígio que davam garantias de cumprir os legados”. Outra das motivações, até meados do século XIX, é a “salvação da alma e a remissão da pena, canalizando a maior parte dos testamentos para missas”, que a partir do século XIX dá lugar a uma maior preocupação com a demonstração de poder e a realização de “obras concretas” (ver caixa).

Entre as mulheres que assumem esta preocupação estão aristocratas ou detentoras de fortunas, que destinam os seus bens a instituições com um papel central na assistência às populações. São viúvas, casadas ou solteiras, movidas pela fé e altruísmo, mas também pela ambição de estatuto social e de reconhecimento entre os pares. Sobre estas mulheres, o responsável pelo Gabinete do Património Cultural da UMP, Mariano Cabaço, escreve, na obra ‘Misericórdias no Feminino’ (2022), que o seu papel é decisivo para a “viabilidade” e “sustentação económica” das Misericórdias e que esta realidade só foi possível por terem “atributos de proprietárias e de testadoras iguais aos dos homens”.

Na Misericórdia de Coimbra, Maria Antónia Lopes destaca os exemplos paradigmáticos de Sebastiana da Luz, Joaquina Pugete e Glória Castanheira, nos séculos XVIII, XIX e XX, lembrando, mais uma vez, que são “doadoras em paridade”, independentemente do estado civil. “As mulheres eram tão proprietárias dos bens do casal como os homens e podiam testar a sua parte sem lhes dizer. Se tivessem filhos, eram livres de fazer testamento de uma terça parte dos seus bens. Quando casavam eram autónomas e participavam na riqueza do casal”, refere. Em relação às viúvas, esclarece que “não herdam as fortunas dos maridos, mas assumem a gestão de bens que já eram delas” enquanto as “solteiras já eram donas de si mesmas e testavam”.

O testamento de Sebastiana da Luz (1752) é o mais significativo entre o de 14 doadores no período de 1730 a 1786. Mulher solteira, substituiu o pai Domingos Álvares nos negócios de família, ainda em vida, e aumentou a sua fortuna cerca de quatro vezes, diversificando os seus investimentos, através da atividade agrícola, comércio e operações de crédito. Segundo Maria Antónia Lopes, num estudo sobre a mercadora setecentista (2005), o que a distingue foi a forma como “geriu e fez prosperar sozinha um negócio que movimentava cabedais avultados, legando-os à Misericórdia de Coimbra. Isto é, a fortuna que deixou não a tinha por herança, não a fizera o pai, o marido ou qualquer outro parente, como as de outras benfeitoras da Santa Casa, mas era o produto do seu trabalho, do seu engenho, da sua energia”, contrariando a ideia de que só no século XX as mulheres entram no mundo do trabalho.

Este percurso não lhe garantiu um lugar na galeria de benfeitores. Mas no século XIX, quando se generaliza este tipo de representações, surge em Coimbra o retrato de uma mulher doadora, Joaquina Pugete, que “deixou tudo o que tinha à Misericórdia, 12 milhões de reis, para amparar meninas órfãs, ajudar os enjeitados e dar dotes de casamento a órfãos pobres”.

Segundo a historiadora Manuela Machado, diretora do centro interpretativo da Misericórdia de Braga e autora de uma tese de doutoramento sobre os legados e benfeitores desta instituição, os retratos femininos são mais frequentes a partir dos séculos XIX e XX, mas existe no acervo um retrato anterior, de uma benemérita do hospital de S. Marcos, conhecida por “Barrozã”, que surge descalça e vestida de camponesa. “Temos pouquíssimos retratos de corpo inteiro e um deles é a da Ângela Martins, que doou dinheiro para alimentar os doentes do hospital. É a nossa benfeitora de excelência e a única mulher retratada no século XVIII”.

A memória dos doadores perdura nas fontes documentais, mas também no património móvel, através de retratos pintados (ou fotografados), bustos, placas evocativas ou inscrições em pedra. De acordo com o historiador Francisco Ribeiro da Silva, mesário do culto e da cultura da Misericórdia do Porto, “por norma quem doasse uma quantia de determinada importância era retratado pela instituição, como forma de homenagear ou incentivar outros a fazer doações. Mas havia benfeitores que ofereciam os seus retratos”. Em casos de doações avultadas, podiam ainda ser admitidas como irmãs beneméritas.

Luzia Joaquina Bruce é uma das 69 mulheres representadas na coleção de retratos da Santa Casa do Porto, num total de 455, e uma das 631 beneméritas da instituição (ver caixa). O historiador e mesário do Porto refere que os “bens que ela deixou são avultadíssimos e as suas benemerências foram muito úteis para o Recolhimento Nossa Senhora da Esperança, hoje Colégio Nossa Senhora da Esperança, e o Hospital de Santo António”. 

O número de benemerências diminui a partir do século XIX, mas persistem exemplos como o de Glória Castanheira (1865-1945, que foi admitida como irmã benemérita da Santa Casa de Coimbra num período em que estava vetado o seu acesso, ou o de Maria Eva Nunes Corrêa (1918-2002), que continuou o legado do marido, após a sua morte, e doou o apartamento, em Lisboa, à Misericórdia de Barcelos para financiar as obras do Centro Social, em Silveiros. Como contrapartida, a instituição deu o seu nome ao equipamento e dedicou-lhe uma sala, no Lar Rainha D. Leonor, com objetos decorativos e retratos pintados do casal.

Neste encontro entre o passado e o presente, as Misericórdias perpetuam memórias e demonstram a sua gratidão pelos doadores, que ajudam a assegurar a missão, ao longo dos séculos. Numa história dominada por homens, o testemunho das mulheres, que geriram bens e legaram heranças, é fundamental para compreender esta realidade de altruísmo, fé e prestígio social, que aproximou as elites das instituições sociais e públicos que servem.

Motivações
de caráter
espiritual
e material

Na Idade Moderna, uma das principais motivações dos doadores era garantir a salvação da alma, através do cumprimento das obras de misericórdia ‘rezar por vivos e defuntos’ e ‘enterrar os mortos’. A partir do século XIX, a demonstração de poder e a realização de obras concretas sobrepõe-se a esta preocupação com a alma, sendo exemplo disto os brasileiros de “torna-viagem”, que fazem doações avultadas às irmandades das terras de origem.

Mulheres
também
são alvo
de legados

Marta Lobo de Araújo e outros historiadores que se dedicam ao estudo da assistência em Portugal referem que as mulheres são o alvo preferencial dos legados instituídos, na Idade Moderna, sobretudo mulheres viúvas e órfãs, devido a preocupações com a honra e necessidade de proteção masculina, através de dotes, esmolas em recolhimentos, onde eram educadas e aprendiam bons costumes.

631
Num total de 2300 benfeitores identificados na Misericórdia do Porto (dados anteriores a 1993), 631 são mulheres. Desse número, 69 estão representadas na coleção de retratos, num total de 455. A equipa do museu salvaguarda que “foram excluídas as rainhas e nem todas podem ter sido benfeitoras”. Entre os primeiros doadores da instituição estão mulheres, como Branca Dinis, Catarina Anes e Isabel Leitoa, que deram “terrenos onde foi instalada a sede”, adiantou ao VM o historiador e mesário Francisco Ribeiro da Silva.

64
Entre os séculos XVI e XVIII, registam-se 261 doadores na Misericórdia de Braga, com predominância do sexo masculino (63%) sobre o feminino (24%), com 64 mulheres. Um número que a historiadora Manuela Machado considera “relativamente elevado, tendo em conta que estabeleceram contratos ou lavraram testamentos sem o acompanhamento dos maridos ou de outro elemento do sexo masculino”. Em relação ao estado civil e condição social, predominam as viúvas (38%) e 30% têm o atributo “Dona”, o que remete para “famílias reconhecidas socialmente”.

11
A Misericórdia de Viseu tem, no seu acervo, 11 retratos pintados, dois bustos e três fotografias de mulheres, expostos na sede administrativa, no museu ou no exterior, no caso dos bustos, segundo dados apurados pelas historiadoras Ana Pinto e Vera Magalhães. Apesar de registarem uma diminuição nas doações, ao longo do século XX, destacam três exemplos mais recentes de mulheres, com fotografias individuais ou de casal, no caso de Emília Arantes de Oliveira, utente da Residência Rainha D. Leonor.

23
Cerca de 135 benfeitores estão retratados na coleção da Misericórdia de Barcelos. Este número inclui 23 mulheres, em exposição na galeria de benfeitores e noutras salas do núcleo museológico. Um desses espaços, designado de Sala de Insígnias da Irmandade, foi inaugurado em outubro de 2022 com o objetivo de “sensibilizar e ensinar, desde logo as gerações mais jovens, para a necessidade e para a nobreza de servir o próximo”, referiu à data o provedor Nuno Reis. Para lembrar estas figuras, a Santa Casa criou em 2021 uma rubrica online ‘Benfeitores em Destaque’.

140
A Misericórdia de Guimarães tem uma coleção de 140 retratos, onde se incluem 20 benfeitoras, segundo Maria Rui Sampaio, responsável pelo Percurso Museológico. Nalguns quadros, o pintor inscreveu o valor e finalidade da doação (‘hospital dos entrevados’ é a mais comum). Desde 2023, alguns retratos estão na galeria de benfeitores, inaugurada com o apoio do Fundo Rainha D. Leonor. Dos 20 em exposição, cinco são de mulheres: Josefa Maria Vaz Moreira, Ana Emília de Araújo Martins, Clara Cândida Margarida, Delfina Luiza Leite d’Andrade e Maria José do Nascimento Simões.

67
A Misericórdia de Coimbra tem identificadas 67 mulheres num total de 227 benfeitores. Dessas 67, apenas três têm retrato na galeria dos benfeitores. De acordo com o museu da Santa Casa, a esmagadora maioria dos retratos, que integram a coleção de pintura, são de “provedores e benfeitores da irmandade, cujas datas extremas vão desde o primeiro quartel do século XVII aos inícios do século XX”. Uma das retratadas é Joaquina Pugete, que segundo Maria Antónia Lopes, deixou “toda a sua fortuna à Misericórdia para apoiar meninas órfãs”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Retrato de Maria Clotilde Faria Fernandes e família, João de Almeida Santos (pintor), 1850, Misericórdia do Porto