Cá fora, não se ouviam caravanas nem megafones, nem bombos ou arruadas, ao contrário daquilo que se passava pelas restantes urbes por esse Portugal fora, antes das eleições legislativas do dia 30 de janeiro.
Mas, à falta de manifestações políticas e cores partidárias, os 48 utentes da Misericórdia de Bragança que optaram por votar antecipadamente no dia 25 de janeiro já sabiam “onde meter a cruz”, para ditarem a constituição de um novo governo que, quem sabe, trará um novo rumo para os territórios do interior.
Canetas, máscaras, luvas e gel desinfetante. Estava completo o "kit" de proteção individual que a equipa da Câmara Municipal de Bragança levou consigo, na visita que realizou à Misericórdia local.
Lá dentro, numa secção de voto improvisada, os utentes seguiam ordeiramente para a mesa composta pelos membros que salvaguardavam o decorrer daquelas eleições antecipadas. Após entregarem os documentos pessoais, seguiam calmamente, quase de forma refletiva, para a cabine de voto onde iam exercer o seu direito. Depois do boletim descarregado na urna, sentia-se no ar e no rosto dos utentes o sentimento de dever cumprido.
Independentemente da idade ou da condição em que se encontram, os idosos reconhecem a importância do sufrágio. É o caso de Ana Nogueira que, com 81 anos, considera o voto uma garantia de um futuro melhor.
“Somos cidadãos e devemos votar para o bem do nosso país, mas principalmente para garantirmos um futuro melhor para as próximas gerações”, explicou a octogenária.
Em dia de voto antecipado na Misericórdia de Bragança, recordam-se os tempos em que as mulheres só tiveram direito de voto universal nas primeiras eleições após o 25 de Abril, em 1975. Ao contrário dos homens, que desde 1945 podiam votar mesmo se analfabetos, elas só tinham acesso às urnas com o equivalente ao curso de liceu (o que é hoje a escolaridade mínima obrigatória) ou se fossem "chefes de família" (por viuvez ou marido ausente).
“Desde que pude, sempre votei. Recordo-me das primeiras eleições em que as mulheres conseguiram votar. Foi um alívio e um verdadeiro sentimento de liberdade como nunca antes vivenciamos”, recordou Ana Nogueira.
Apesar de ser do sexo oposto, e com outras regalias e liberdades durante o período ditatorial do país, Ângelo Fernandes, utente da Misericórdia de Bragança há três anos, discordava do facto das mulheres não terem permissão para votar até à queda do regime.
“Não achava bem as mulheres não votarem. Devíamos ter igualdade para todos, sendo homem ou mulher. Depois do 25 de abril foi tudo muito melhor”, disse Ângelo Fernandes.
Agora, com 85 anos, exerceu também o seu direito de voto no dia 25 de janeiro, considerando “uma obrigação” para um futuro melhor.
Depois de discutida a questão da igualdade de género em relação ao sufrágio no pós-25 de Abril, outros utentes recordaram, ainda, a tradição nos dias das eleições pelas aldeias do interior transmontano, sendo quase “um dia sagrado” e respeitado pelas famílias que, mesmo sem grande informação sobre a atualidade política da época, honravam a democracia e o poder que o voto tinha.
“Quando o meu marido era vivo e as minhas filhas moravam connosco, recordo-me que íamos à missa ao domingo, vínhamos almoçar, limpávamos a cozinha, vestíamos uma roupa melhor e íamos todos juntos votar. Era uma tradição”, recordou Alice Fernandes.
Aos 89 anos, Alice Fernandes não se deixa descurar no dia das eleições, reconhecendo-lhes a devida importância para o futuro. “Temos todos esta obrigação, porque quem não vota também não pode protestar com o estado do país”.
Na Misericórdia de Bragança, que atualmente conta com mais de 140 utentes institucionalizados em lares, mais de um terço dos idosos se mostraram disponíveis e motivados para cumprirem o dever cívico de votar.
“São pessoas que durante muitos anos não tiveram a possibilidade de votar e ainda vivem de alguma forma estes tempos eleitorais. Por isso é importante darmos-lhe essa oportunidade de votarem em segurança”, explicou Eleutério Alves, provedor da Misericórdia de Bragança.
O provedor da instituição brigantina referiu que, “apesar de institucionalizados”, os utentes estão a par da atualidade política do país e a política continua a ser um tema debatido dentro das paredes da Misericórdia.
“Para muitos deles a política passa pelo sentimento do dia-a-dia que eles têm. Se a sua vida está boa ou má associam sempre ao governo e a quem está em Lisboa a representar-nos”, disse Eleutério Alves.
Esta foi a terceira vez, na história da democracia, que os idosos em lares ou residências seniores aderiram ao voto antecipado, por se encontrarem em isolamento profilático ou confinados por força da pandemia de Covid-19.
Voz das Misericórdias, Daniela Parente