Os hospitais geridos pelas Santas Casas e outras instituições filantrópicas, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul (RS), estão finalmente a retomar a normalidade, após a calamidade, que condicionou o funcionamento de 70% das unidades de saúde da região e provocou 806 feridos, 180 mortos e mais de 540 mil desalojados. As cheias de maio afetaram indiretamente todos os 245 hospitais da rede filantrópica, obrigando a cancelar consultas e cirurgias e sobrecarregando os hospitais remanescentes. Os hospitais da rede representam 73,57% da oferta na região, sendo os únicos equipamentos existentes em 183 dos 497 municípios do RS.

Segundo a presidente da Federação das Santas Casas e dos Hospitais Sem Fins Lucrativos do Rio Grande do Sul, Vanderli de Barros, “praticamente todas as regiões do Rio Grande do Sul foram afetadas direta ou indiretamente” pelas chuvas intensas e o impacto na rede hospitalar traduziu-se, sobretudo, ao nível do abastecimento de energia elétrica, água potável, medicamentos e outros bens essenciais, a que se associou a dificuldade de transporte dos profissionais e pacientes, devido a bloqueios nas rotas de acesso aos hospitais.

Os maiores prejuízos dizem respeito à reabilitação de hospitais “totalmente invadidos pelas águas”, mas também a custos envolvendo o “pagamento de folhas salariais e compromissos com fornecedores”, adiantou em esclarecimentos enviados ao VM. Noutros equipamentos, cercados pelas águas, a funcionalidade foi comprometida pela “escassez no abastecimento de energia elétrica (agora alimentados por geradores), água potável com abastecimento através de caminhão pipa, abastecimento de gases medicinais, itens de nutrição alimentar, material médico hospitalar e medicamentos, tudo ensejando custos adicionais importantes”.

Acresce a tudo isto a ausência dos profissionais de saúde, diretamente afetados pela intempérie, “incidindo em horas extras de substituição, contratações temporárias, viabilidade de transporte alternativo fretado, apoios a recomposição de seus lares, antecipações de salários, antecipações de férias, entre outras situações”, referiu Vanderli de Barros.

Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, foi das áreas mais atingidas, com o lago do rio Guaíba a atingir níveis históricos de 5,25 metros, no dia 14 de maio, interditando as principais vias de acesso e provocando danos nas habitações, unidades de saúde, escolas e outras infraestruturas. Em videochamada com o VM, o diretor administrativo da Santa Casa local, Jader Pires da Silva, relatou a forma como a “água pegou cerca de 30% da cidade, com uma velocidade bem elevada, praticamente ilhando Porto Alegre do restante estado”. No período mais crítico, dois mil funcionários estiveram impedidos de aceder ao hospital, por se encontrarem “em regiões alagadas ou porque as rodovias não estavam liberadas”.

Neste contexto, a prioridade foi dar alojamento aos que “moravam em zonas limítrofes e não conseguiam voltar às suas residências”, mas também ajudar os profissionais que perderam as suas casas e outros bens essenciais. Para apoiar estas famílias, a instituição mobilizou a sociedade civil numa campanha de solidariedade sem precedentes que permitiu angariar mais de dois milhões de reais, com o apoio de 1158 doadores, entre empresas, instituições e particulares, e trazer “alento e esperança aos 735 colaboradores diretamente atingidos pela catástrofe, viabilizando apoio neste momento de recomeços”, referem no relatório final da iniciativa ‘Abrace a solidariedade’.

Nos primeiros dias da tragédia, o responsável da Santa Casa relata que surgiram outros “problemas sérios de abastecimento de energia elétrica e água potável. O primeiro impacto foi de energia, sendo necessário adquirir geradores elétricos e receber uma manobra de uma outra subestação. Mas no quarto ou quinto dia de enchente, a água potável do município acabou e tivemos de conseguir 60 camiões por dia para abastecer o hospital porque isso mantém tudo funcionando, temos 1300 leitos [camas], com hemodiálise, cirurgia cardíaca, transplantes e procedimentos de altíssima complexidade”. Ao corte das rodovias e falhas no abastecimento de energia e água, juntaram-se dificuldades com “fornecedores que tiveram fábricas inundadas” e a dificuldade de acesso dos pacientes às unidades de saúde.

Mais de dois meses após as cheias, Jader Pires Silva revela que a relação dos doentes com o hospital ainda não está normalizada porque muitos estão “recuperando as suas casas e muitas famílias do interior ainda não têm condições de vir à capital fazer os seus tratamentos”. Por isso, neste momento, a instituição tem “90% da capacidade a ser utilizada, o que não é habitual porque é inverno e costumamos ter alta ocupação”. Até agosto, a Santa Casa de Porto Alegre prevê ter esta situação regularizada nos oito hospitais que administra na cidade.

Noutra cidade afetada pela calamidade, Rio Grande, a Santa Casa revelou, numa nota publicada a 23 de maio, os esforços necessários para garantir os cuidados de saúde à população, reduzindo a capacidade para metade no Hospital Geral (HG), onde dispõe de 300 camas, e transferindo vários serviços para o Hospital de Cardiologia e Oncologia (HCO), localizado numa zona mais segura a três quilómetros de distância, “onde foi necessário buscar espaços físicos provisórios para aumentar a capacidade instalada de 87 leitos para 136”.

Para apoiar a reestruturação da rede de saúde, a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas do Brasil (CMB) e a Federação de Santas Casas do Rio Grande do Sul uniram esforços para mitigar o aumento exponencial de custos, com a colaboração do deputado António Brito, presidente da Frente Parlamentar das Santas Casas, e do deputado Pedro Westphalen, presidente da Frente Parlamentar dos Prestadores de Serviços de Saúde. Uma das medidas foi a suspensão do pagamento de parcelas de empréstimos bancários pelos hospitais, por um prazo de doze meses, a que se junta o adiamento do pagamento de impostos na região afetada pela catástrofe.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas