Como em tudo, há exceções. Quase todos vestem um chapéu com fita verde à volta, mas há uma cabeça que salta à vista por usar uma boina. É o Sr. Batista, que não se serve do braço de ninguém nem de uma bengala para andar: dá uso a um andarilho com rodas. Como diz a auxiliar de ação direta, Margarida Silva: “Além da boina tem um Ferrari.” De facto, hoje é dia de volta de bicicleta com o voluntário do projeto ‘Pedalar sem Idade’. Mas primeiro o café.
O espaço da Casa da Guia tem várias esplanadas, mas a caminhada prolonga-se até se encontrar um canto sossegado. “É mesmo importante para eles, para saírem, apanharem um bocadinho de ar. Eles já estiveram muito tempo fechados, tempo demais”, diz Margarida entre ajudá-los a instalar nas cadeiras e levar-lhes os cafés às mesas. Trabalha com eles há seis meses, mas tem plena noção das dificuldades da pandemia. A animadora Célia Coelho explica como lidaram com a situação: “Íamos com um grupo no carro e não saíam. Fazíamos por exemplo esta zona toda ou serra de Sintra e não saíam do carro. Não podíamos estar com mais ninguém na rua.” Hoje, felizmente, há ar puro e contacto. Já falta pouco, continuemos.
Depois de um isolamento acentuado nos últimos dois anos, poucas coisas podem superar uma simples manhã fora do lar com o céu aberto e risonho e a D. Cesaltina, de 91 anos, confirma: “Os dias em que temos saído têm sido muito bonitos.” Só que esta, afinal, não é mesmo uma manhã como as outras. A atração principal é um passeio sem esforço para os joelhos, graças à iniciativa da associação ‘Pedalar sem Idade’, uma associação que combina voluntários com pessoas idosas ou com mobilidade reduzida, de forma a proporcionar passeios e combater a solidão. A receita é simples: uns pedalam, outros passeiam.
O voluntário é Jay Iseki Takenami, um jovem que veio do Brasil e está a fazer a sua tese de mestrado em Design de Produto, na Faculdade de Arquitetura. “O tema envolve a mobilidade urbana de idosos e cadeirantes” e a participação no ‘Pedalar sem Idade’ visa “tentar perceber a influência da mobilidade na vida dessas pessoas”, explica. O projeto tem raízes no estrangeiro e conta já com quatro capítulos em Portugal: Castro Verde, Guimarães, Lisboa e Cascais. Neste último, onde nos encontramos, há duas rotas possíveis e Jay já treinou as duas, só que sozinho. Hoje, estreia-se com passageiros.
Em conversa com o VM, a D. Clementina diz que vão no trishaw “aos pares como os fracos” e a auxiliar responde corrigindo, entre risos, para “pares de jarras”. O banco do trishaw, como sempre, aguarda por duas pessoas. O par planeado para a viagem de hoje é o Sr. Batista, da boina, mais o Sr. Rijo, que entrou para a residência há oito dias. No entanto o Sr. Batista não está convencido com o passeio e isso quer dizer que fica um lugar vazio no banco.
No dia de estreia de Jay como motorista e do Sr. Rijo como passageiro, resta-me completar o trio como acompanhante. O triângulo segue assim sobre rodas em direção ao Guincho. Pergunto ao Jay se se está a dar bem com o esforço e ele diz que, com “mais gente, é mais fácil para pedalar porque tem mais estabilidade”. Ao Sr. Rijo pergunto se se está a dar bem com não ter de fazer esforço: “Um veículo destes é que nunca pensei. É uma beleza e nem gasta combustível”, eis a resposta.
O vento bate-nos de frente enquanto oiço o bater ritmado de uma bengala ao meu lado e uma assobiadela de vez em quando. “Passeios destes um gajo adora”, diz o sr. Rijo. Vive por estas bandas há mais de 50 anos, fez esta estrada vezes sem conta. Conhece bem a zona, mas em cinco décadas muita coisa muda. Olha a paisagem à nossa volta e solta: “Estavam plantados pinheiros, agora está plantado cimento.” Sim, a cidade ganhou muita força no último meio século. Ao menos o vento frio do Guincho continua o mesmo.
Ao mesmo tempo da viagem, junto à Casa da Guia estão os restantes nove passeantes. Hoje não foi dia de andarem no trishaw, porém vale a pena ouvir o que dizia a mãe da D. Clementina: “Não podemos ser egoístas e querer as coisas só para nós, tem de ser para os outros também.” Nem jarras, nem fracos, afinal: solidários (todos) nonagenários (a maioria). A encaminhar-se para o regresso, a D. Caramelo lembra a canção “Somos Livres”, de Ermelinda Duarte, e entoa-a com tamanha beleza que até uma senhora que passava naquele instante à sua beira lhe pediu um abraço.
“Uma gaivota voava, voava / Asas de vento / Coração de mar / Como ela, somos livres / Somos livres de voar”. Engana-se no último verso do refrão e em vez disso canta: “Como ela, vou voando sem parar.” Engano? Não. Afinal, com ela e a gaivota vai também o Sr. Batista, sentado na paragem de autocarro a acenar para o trishaw quando passámos; o Sr. Rijo, a descobrir novos passeios em estradas velhas; a D. Cesaltina, “não vaidosa, mas arranjada”; o Sr. Cesário, em movimento com os seus 96 anos; a D. Francisca, jovem com os seus 74; a D. Josefa, com a longa estadia na residência; o Sr. Fernando, tipógrafo de outrora no Diário de Notícias; o Sr. Alexandre, com os seus óculos de sol à aviador; e a D. Clementina, com as suas jarras aos pares. E com eles vão ‘voando sem parar’ todos os outros utentes da Residência Sénior das Fisgas que não podem ir pelo próprio pé.
Voz das Misericórdias, Duarte Ferreira