No princípio sentimos medo. Um desassossego sem precedentes. O vírus chegou sem pedir licença e fez estremecer as nossas vidas. Sorrateiro e invisível, instalou-se sem qualquer suspeita. Do plano à ação, apenas tempo para reagir, isolar e cuidar. Sobreviver na incerteza do amanhã. Depois a interiorização de novas rotinas de proteção e o rescaldo do primeiro furacão para o qual ninguém estava preparado. Nas Misericórdias fustigadas pela Covid-19, o vírus trouxe desgaste e desespero, mas também a coragem e resiliência das equipas que se uniram e disseram ‘presente’ sem vacilar um segundo, numa ode à vida.
O VM ouviu as histórias de superação de Ovar, Aveiro, Nordeste, Santo Tirso, Vila Nova de Foz Côa, Melgaço, Monção e Cinfães, pela voz das lideranças intermédias no terreno, para lembrar as vítimas da Covid-19, os cuidadores que fazem da sua vida uma missão e as estratégias de liderança por empatia, que dignificam o indivíduo através da pertença ao grupo.
Nas muitas horas de conversa, que serviram de catarse e registo para memória futura, percebemos que o vírus não é uma cruz que carregam, mas resultado de redes de contágio na comunidade, que intercetaram nalgum ponto os lares, apesar do travão imposto pelas normas em vigor. A diminuição da rotatividade e circulação de pessoas não foi suficiente para conter a sua entrada porque, nalguns casos, “ele já lá estava” quando fecharam ao exterior.
As datas estão gravadas na memória. O primeiro caso positivo, os testes em massa, o isolamento de infetados e a reformulação das equipas, que nalguns casos ficaram reduzidas a menos de metade. “Éramos poucos para tantas exigências”, recorda o diretor técnico do lar da Misericórdia de Vila Nova de Foz Côa, Octávio Rocha, recuando a 26 de março. Em 24 horas, a equipa de 30 ficou reduzida a 5 pessoas, estabilizando dias mais tarde com a chegada de voluntários e funcionários de outras respostas sociais. Pelo meio, muitas noites sem dormir a vigiar idosos.
A sobrecarga de trabalho, associada a uma conjuntura de incerteza e imprevisibilidade, foram as principais fontes de desgaste nestes meses de surto. “Estávamos a trabalhar numa situação limite, de enorme stress, por isso quando os apoios não chegavam na hora prevista isso causava transtorno. A incerteza de não saber o que ia acontecer no dia seguinte, por falta de meios ou coordenação, gerava ansiedade”, revela Octávio Rocha.
Demasiadas mudanças e pouco tempo para refletir e gerir emoções. “Os planos estavam prontos, mas rapidamente passámos do cenário A para o C”, recorda Jaime Carvalho Homem, diretor geral da Misericórdia de Aveiro. Em poucos dias, a “casa aberta” às famílias transformou-se num hospital com 90 infetados, “muito idosos, com demências e multipatologias”, valendo-lhes uma equipa de enfermagem em permanência 24 horas por dia.
Ana Luísa Carvalho, diretora técnica do Lar Leonor Beleza, descreve um cenário semelhante em Santo Tirso. “Como unidade de dependentes sempre nos assemelhámos a uma unidade hospitalar, mas alterou-se por completo o ambiente familiar da nossa casa, os quartos transformaram-se em enfermarias e o lar num hospital de campanha”.
Salas vazias, corredores despidos e utentes recolhidos nos quartos, onde se ouviam perguntas sem resposta fácil: “sinto-me bem, porque não posso ir à rua?”. Patrícia Cambóia, diretora técnica do lar da Misericórdia do Nordeste, na ilha de São Miguel, não consegue esquecer “o olhar assustado dos idosos quando nos viram todos equipados pela primeira vez”. Máscaras, viseiras, toucas, batas, fatos, luvas, que só deixavam a descoberto o olhar dos cuidadores.
Os dias tornaram-se indistintos, na sua estranheza e apatia, e o silêncio instalou-se nas estruturas repletas de vida que serviam de segunda casa para muitos familiares. “Nós somos um povo de afetos e o facto de termos de isolar idosos nos quartos e cancelar visitas afetou-nos a todos. Eles compreendiam, mas compreender não é aceitar. São pessoas no fim das suas vidas que querem estar com aqueles que amam”, observa Vera Castro, diretora técnica do lar da Misericórdia de Ovar, que antecipou o fecho de portas, logo após a cerca sanitária.
Do lado de fora, as notícias de mortes a abrir os telejornais geravam ansiedade no confronto com a realidade vivida nos lares. “As pessoas saíam daqui orgulhosas do trabalho feito e quando ligavam a televisão parecia que se estava aqui a viver um filme de terror. Aquilo que era transmitido não era o sentimento de esperança que se vivia aqui dentro, entre os utentes e funcionários”, lamenta Jaime Carvalho Homem (Aveiro).
A esperança contrapunha-se ao desalento que dissimulavam para proteger os idosos e garantir a estrutura emocional da equipa, sem saber o que o dia seguinte lhes reservava. No Lar Leonor Beleza, em Santo Tirso, Ana Luísa Carvalho revela que, a partir de certo momento, atingiram a “paz” necessária ao equilíbrio interno para salvaguarda de todos. “Percebemos que tínhamos de proteger os utentes e familiares e que sem essa paz não íamos aguentar nem ter os familiares do nosso lado. Íamos perder mais utentes com a ansiedade”.
No pico da crise, Estefânia Caçador, diretora técnica no Lar Pereira de Sousa, da Misericórdia de Melgaço, recorda que a motivação do grupo era fulcral para sobreviver. “Não era bem motivar, mas não desanimar. Tínhamos de continuar, não havia alternativa, baixar os braços não era uma hipótese. A nossa preocupação principal era o bem-estar e saúde dos utentes”.
Superar adversidades em equipa
O elemento decisivo para a superação das adversidades neste contexto, conforme explicam os nossos interlocutores, é a equipa. O grupo onde se alicerçam, encontram suporte técnico e conforto emocional. Por isso, na avaliação que faz do desgaste sentido por estes profissionais, Miguel Bragança, psiquiatra e presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, identifica a liderança como fator de sucesso na superação de situações de crise.
“A liderança é nuclear, é preciso de ter lideranças equilibradas, que falem a verdade, sejam benévolas, flexíveis, que saibam comunicar e tenham empatia. Para a prevenção do desgaste, é muito importante a pessoa ter autonomia e saber que há uma parte que depende dela e da sua criatividade, não cumprindo apenas ordens. É muito importante cuidar do grupo e isso começa com a liderança, mas também se estende aos colegas, onde se deve procurar apoio” (ver mais na página 31).
Nas Misericórdias cuidar do grupo significou ouvir, compreender e partilhar fragilidades, mesmo quando a solução não era imediata. Na prática, isso traduziu-se em lideranças que confiam no outro e comunicam com verdade, como nos revela Patrícia Cambóia (Nordeste) num testemunho intenso: “Sempre trabalhei com verdade aqui dentro, nunca lhes escondi nada, sentiram que eram um deles”.
Lideranças partilhadas que confiam e delegam, através de um modelo de gestão partilhada, assente na “divisão de responsabilidades e proximidade na definição de estratégias” que, segundo Jaime Carvalho Homem (Aveiro), garantiu capacidade de reação no momento.
E lideranças que motivam através da partilha de dificuldades comuns. “A maior lição que tiramos disto tudo é que juntos conseguimos ultrapassar as dificuldades e amparar o barco. A capacidade de entreajuda que existe tornou-se evidente. Num momento de desespero todos se uniram para que juntos conseguíssemos dar a melhor resposta, desde a mesa administrativa à comunidade. Hoje somos pessoas diferentes”, reflete Joana Afonso, diretora técnica na Misericórdia de Monção.
No terreno, essa estratégia teve retorno ao nível da entrega dos colaboradores, confiança dos familiares e apoio da comunidade. “Todos fomos líderes. Ninguém foi mais importante, todos se ouviram e fizeram de tudo. Nenhuma liderança funciona sem os colaboradores e sem a entrega de todos teria sido impossível”, recorda Ana Luísa Carvalho (Santo Tirso).
Pelo caminho, foram sacrificados momentos de descanso e de lazer com as famílias. Mas todos são perentórios, como Vera Castro (Ovar), quando afirmam: “se tivesse de repetir fazia tudo de novo. Não podia deixar de estar presente”.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Ilustrações: Eunice Rosado