Preservar as receitas de Natal e avivar a memória dos idosos que vivem sozinhos nas aldeias, recolhendo receitas, histórias de vida e emoções foram os objetivos da Santa Casa da Misericórdia da Covilhã com a iniciativa “Receitas de Natal”, inserida no vasto programa de animação e partilha que a instituição preparou para esta quadra.

A iniciativa consistiu em passar um dia, numa aldeia do concelho da Covilhã, a recuperar as receitas de Natal. Das tradicionais filhós e rabanadas, ou fatias douradas, às improváveis picas de bacalhau.

Os idosos abriram as portas das suas casas à equipa da Misericórdia e cozinharam as iguarias natalícias, deixando as receitas originais num vídeo onde, entre um ingrediente e um tempero, iam envolvendo memórias e revelando os segredos da receita.

O cabrito de Natal de Otília Santos, por exemplo, só pode ir ao forno numa assadeira de barro e tem de levar alecrim no tempero para ficar com o sabor do campo. Otília revela ainda como deve ser tirada a gordura, “o bedum”, que dá um mau sabor ao cabrito, que tem de ficar em água, sal e limão de um dia para o outro.

Entre o alho, o colorau, a noz moscada e o vinho branco com que vai regando o cabrito, Otília Ramos recorda que este prato não falta na mesa do Natal quando junta os quatro filhos e os oito netos. À pergunta ‘A que sabe este cabrito de Natal?’ Otília responde, com a voz embargada e os olhos brilhantes, que “sabe a saudade, a harmonia e a convívio”.

A iniciativa, segundo o provedor da Santa Casa da Covilhã, Neto Freire, além de combater o isolamento e preservar as receitas de Natal, “trabalha também a memória e as emoções, porque eles recriaram uma receita da sua infância, da sua memória”.

Felicidade Canha, alegre até no nome, recorda a simplicidade do Natal da sua infância, em S. Jorge da Beira, onde nem todos tinham cabrito ou bacalhau na mesa de Natal. Mas, fosse qual fosse a condição social, as fatias douradas, por terem poucos ingredientes e serem acessíveis a todos, não faltavam em nenhuma mesa de Natal.

“Antigamente era aquilo que os pobres faziam, os ingredientes eram poucos e o dinheiro também, então faziam estas fatias e uns sonhos e nem era de farinha boa, era o que havia”, recorda Felicidade enquanto molha as fatias do pão, “que tem de ser duro, com dois ou três dias”, primeiro no leite, depois no ovo, antes de irem a fritar em óleo bem quente.

“A minha avó morreu com 102 anos e lembro-me dela fazer as rabanadas, não eram tão especiais ou elaboradas, como agora, mas era o que havia”. No final, depois de polvilhadas com açúcar e canela, as fatias douradas estão prontas para levar luz e sabor a qualquer mesa de Natal. De ricos ou de pobres, as fatias douradas são, provavelmente, a mais democrática das iguarias de Natal.

De S. Jorge da Beira a Sobral de S. Miguel é um instante. E foi nesta aldeia de xisto que Maria da Conceição Paiva partilhou a sua receita de pica de bacalhau.

Bacalhau desfiado, cebola picada, tudo envolto em azeite, mistura-se com a farinha de milho e envolve-se a massa numa folha de couve crua antes de ir ao forno a lenha. O segredo está na folha de couve, “que deixa a pica macia” e no final, a pica deve ser cortada à mão e distribuída por todos os que estiverem presentes na mesa.

Mas, há outros segredos por desvendar nesta iguaria, aparentemente simples, e que lhe dá um sabor único. “A pica de bacalhau tem os sabores da nossa aldeia, o azeite da minha própria oliveira, a farinha do meu próprio suor e a cebola, que também sou eu que a planto.”

Já o arroz doce da dona Maria José Duarte parece não ter segredos. “Água quente com açúcar e uma pitada de sal, quando a água está a ferver deita-se uma casca de laranja, deixa-se ferver e deita-se o arroz. Quando o arroz estiver a ferver vai-se misturando, aos poucos, o leite fervido.”

Mas, no final, há um pormenor que muda tudo. O arroz doce é deitado em pratos de barro antigos e a canela é aplicada como se o arroz doce estivesse a ser rendilhado. “Antigamente era assim, a tradição da mesa de Natal era assim, o arroz doce não podia faltar nas festas, nos casamentos, nos batizados, mas, principalmente, no Natal.”

Maria José Duarte olha para os pratos antigos de arroz doce e viaja até ao Natal da sua infância, “lembro-me dos meus pais porque era uma tradição na nossa casa, a mesa de Natal tinha sempre arroz doce e traz-me doces saudades.”

Maria de Jesus Abreu tem 87 anos e foi no Barco, uma aldeia à beira do Rio Zêzere, no concelho da Covilhã, que partilhou a sua receita de filhós. Um quilo de farinha, branquinha como a neve que cai na serra, seis ovos caseiros, para ficarem amarelinhas, como o sol, 25 gramas de fermento de padeiro, para crescer a massa, quatro colheres de sopa de açúcar, para ficarem docinhas, sal para equilibrar os sabores, “uma pinguinha de azeite, uma pinguinha de aguardente, amassa-se tudo até ficar desagarrada a massa da mão, tapa-se para crescer e quando o óleo estiver bem quente fritam-se.”

O segredo está em saber moldar a filhó e, para isso, Maria de Jesus vai molhando as mãos no azeite. “Mas, se a massa estiver bem finta não é preciso estar sempre a meter a mão no azeite, porque molda-se bem com as mãos.” No final, são polvilhadas de açúcar e a canela, para quem gosta.

“Tenho pena de não haver cá pessoas que façam as filhós como eu faço. É uma tradição que aprendi com a minha mãe que morreu com 90 anos. Para mim, se não houver filhós na noite de Natal, nem no dia de Natal, é uma tristeza.” Natal sem filhós, não é Natal, na casa de Maria de Jesus.

Todas as receitas, a que se juntam ainda as papas de carolo e a sopa de feijão, estão disponíveis na página do Facebook da Santa Casa da Misericórdia da Covilhã, dando, assim, cumprimento a outro dos objetivos do programa, centrado no verbo partilhar.

Voz das Misericórdias, Paula Brito