Dar pousada ou abrigo aos peregrinos é uma das sete obras de misericórdia corporais, que inspiram e orientam a ação quotidiana das Santas Casas, em todo o território nacional. O acolhimento do viajante ou estrangeiro, que não tem como e onde se abrigar, está implícito nesta obra de misericórdia, intimamente ligada à ideia de hospitalidade e de dar casa ao outro.
O cumprimento da sexta obra de misericórdia remonta aos primórdios da sua história, seguindo o exemplo de outras confrarias e mosteiros, que apoiavam peregrinos desde a Idade Média. Durante a Idade Moderna, as Misericórdias vão também dedicar-se a hospedar peregrinos e outros viajantes, passando cartas de guia e de cavalgadura, quando necessário.
Nestes documentos, que atestavam a pobreza e necessidade da esmola do viajante, identificava-se o local de partida e de destino, garantindo-se uma assistência em rede, em todo o território nacional. Quando os viajantes se encontravam doentes e impossibilitados de caminhar, a Misericórdia fornecia ou pagava o transporte a cavalo (carta de cavalgadura). Consoante a região do país, assegurava ainda o transporte de barco, como acontecia em Aveiro, onde a instituição permitia que se deslocassem na barca da Misericórdia.
Évora, Coimbra, Ponte da Barca, Caminha, Arcos de Valdevez e Braga são exemplos de outras Misericórdias que se dedicaram a albergar os que se encontravam em viagem, assegurando-lhes “teto para pernoitar, esteira, água e luz durante alguns dias”, relata Marta Lobo de Araújo, num estudo sobre o tema. Os grupos de forasteiros vindos de outros reinos, viajantes e pessoas a caminho de Santiago ou outros locais de devoção eram acolhidos nos hospitais ou em albergues específicos para peregrinos enquanto não seguiam para o próximo destino.
Recordando o contexto socioeconómico destes movimentos migratórios, o responsável pelo Gabinete de Património Cultural da UMP, Mariano Cabaço, lembra que o “país era desprovido de estradas e estruturas de apoio, e que por isso as pessoas deambulavam pelo território, demorando três a quatro semanas de Lisboa ao Porto”. Nesse contexto, os peregrinos movidos pela fé eram uma minoria nesta rede de apoio organizada que acolhia pobres e caminhantes.
Santiago de Compostela era um dos centros religiosos de maior procura pelos fiéis, motivando maior movimentação e acolhimento nas instituições localizadas nos locais de fronteira com Espanha, na região norte do país (Monção, Valença, Melgaço, Arcos de Valdevez, Braga).
Mais recente é o fenómeno de Fátima, associado às aparições de Nossa Senhora aos três pastorinhos no ano de 1917, que mobiliza hoje milhares de fiéis de todas as idades. O apoio das Misericórdias aos peregrinos que deixam as suas casas rumo ao Santuário da Cova da Iria é uma tradição recente e pontual, circunscrita às localidades junto das principais rotas marianas, que em 2015, segundo dados apurados pelo VM, mobilizava 32 instituições no apoio em dormidas, alimentação, acesso a balneários ou cuidados de saúde.
Em 2016 e 2018, também a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) se associou a esta manifestação pública de fé convidando as 400 associadas a participar numa peregrinação nacional com os colaboradores, irmãos, órgãos sociais, voluntários e utentes. A iniciativa iniciada por ocasião do Ano Extraordinário da Misericórdia reuniu perto de dez mil pessoas, no primeiro ano, e mais de sete mil, no segundo, num momento de partilha e reencontro com os valores e princípios fundacionais das instituições.
Para dar nota do apoio prestado pelas Misericórdias aos peregrinos cujo destino é o Santuário da Cova da Iria, o VM esteve em Ílhavo e Coruche. A celebrar 100 anos em 2019, a Misericórdia de Ílhavo organizou pela primeira vez um posto de apoio a peregrinos enquanto em Coruche a congénere presta apoio regular através de cuidados de saúde, refeições e alojamento.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Fotografia | Paulo Rocha, Agência Ecclesia