O último ano desafiou limites individuais e coletivos, exigindo leituras atentas da realidade e reajustes permanentes da intervenção. Na transição para 2021, a vacina trouxe esperança, mas a regra continua a ser proteger, cuidar e resistir. Para assinalar a data, recolhemos os testemunhos de 13 “heróis anónimos” que garantiram cuidados a quem mais precisava. Não hesitam em dizer que “voltariam a fazer tudo de novo” e atribuem o mérito à equipa que servem de forma comprometida. Relatos de quem cuida por vocação.

O luto faz parte da vida diária

“A gata Francisca não entende o que se passa. Não percebe porque é que já não come à mesma hora. Não entende porque é que os cadeirões estão vazios de colos para se enroscar. Estranha o espaço que tem para vaguear. Não sabe o porquê de tanta porta fechada e o porquê de algumas não voltarem a abrir”. Estas palavras foram escritas numa madrugada de janeiro de 2021, durante o surto que vitimou onze idosos e deixou mazelas (in)visíveis.

Nada na sua carreira profissional a preparara para o que viveu nestes dias de “luto e guerra”. “Estávamos preparados para tudo menos para aquilo que aconteceu: a dor e o desespero”. Em poucos dias, a casa ficou sem funcionários para acorrer às necessidades dos utentes. “Não tínhamos pernas para correr aos quartos, as oscilações do estado de saúde eram vertiginosas”.

Na segunda semana, as ambulâncias e carros funerários faziam fila no exterior. “Um cenário desolador”.

No interior, apesar do sofrimento, nunca faltaram afetos. “Cada alma que perdemos foi cuidada, abraçada e amada até ao seu último momento. São os avós, tios e bisavós que temos em casa connosco”.

No rescaldo do surto, os corredores e salas vazias gritam a ausência dos que partiram. O luto faz parte da vida diária. “Todos os dias falamos nas pessoas que perdemos, era um desrespeito ignorar esta memória”.

Ana Duarte, 40 anos, diretora técnica do lar de idosos, Misericórdia de Cabrela