A pandemia alargou o fosso entre homens e mulheres. Os sinais de alarme têm soado em todo o mundo com o aumento das desigualdades no mercado de trabalho e em casa. Sobre as mulheres, que representam 70% dos cuidados sociais e de saúde no mundo, recaíram maiores responsabilidades no combate à pandemia, mas recaíram também os principais impactos sociais e económicos da Covid-19. Num tempo de avanços e recuos, a celebração faz-se com a reafirmação da igualdade e a construção do futuro a que temos direito. Fomos, por isso, ouvir, os relatos de cinco mulheres, com diferentes funções nas Misericórdias e UMP, que mostram que a realização plena e conciliação da vida pessoal e profissional é possível e desejável.
Embora se registem sinais positivos sobre a participação dos homens na vida familiar, a generalização do teletrabalho acentuou nalguns casos as dificuldades existentes na conciliação entre trabalho e vida familiar. Muitas mulheres cumprem jornadas sem descanso de trabalho e assistência à família, assumindo diferentes papéis: trabalhadora, educadora, cozinheira e professora. E sentem a culpa pelo que não corre bem, numa simbiose imperfeita. Os testemunhos que ouvimos refletem o frágil equilíbrio na partilha de responsabilidades em casa e a sobrecarga sentida a vários níveis.
Catarina Pereira, 40 anos, diretora técnica da creche da Misericórdia de Chaves, tem dois filhos menores, com 2 e 10 anos, e revela as dificuldades na gestão do tempo. “São dois trabalhos que tenho, o apoio ao estudo, banhos e refeições, e a escola que adoro”.
De janeiro a março, esteve em contraciclo devido à profissão que abraça com paixão. Enquanto os filhos estiveram em casa, devido ao encerramento de escolas, creches e jardins de infância, Catarina acolheu os filhos dos trabalhadores essenciais na creche. Um período “gratificante”, mas “difícil” por “sentir que não lhes dedicava tanto tempo quanto gostaria”.
Apesar das mudanças face às gerações anteriores, considera que persistem desequilíbrios na partilha de responsabilidades em casa. “As mulheres ainda levam a casa às costas. Não acho que tenha apenas uma profissão, na creche sou educadora, amiga, médica, em casa sou mãe, educadora, cozinheira, mil e uma coisas, parece que é esperado que façamos tudo isto”.
A multiplicidade de papéis no dia-a-dia exige uma gestão meticulosa do tempo. Ao final do dia, o corpo acusa sinais de cansaço, mas reinventa-se para recomeçar tudo de novo.
Sónia Pereira, 42 anos, ajudante de lar e centro de dia da Misericórdia da Redinha, é “mãe 24 horas por dia”, para compensar a ausência do pai, chefe de armazém com horário alargado, mas não lamenta a opção tomada. O rumo profissional foi definido com base nestas prioridades para poder conciliar com os horários da escola. “Em casa, assumo mais responsabilidades na educação dos miúdos, mas escolhi ser mãe e tenho de cumprir esse papel”. Para este equilíbrio, contribuem pequenos momentos de ócio, de que não prescinde no final de cada dia de trabalho: “ler um livro, ter o meu espaço e sossego e dar uma corrida”. Nesses momentos, o marido assume as tarefas domésticas porque “a casa é dos dois”.
Em cargos de gestão intermédia ou superior, a conciliação exige um esforço acrescido. Para Catarina Cerqueira, diretora técnica da unidade de cuidados continuados Bento XVI (UMP) desde 2016, o “equilíbrio de papéis é fundamental”, mas não é igual em cada momento. “Num dia dou mais no trabalho porque estou num momento de crise e depois tiro uma semana e esqueço o trabalho. Não se pode fazer um plano, vive-se o dia a dia em função das necessidades da família e do trabalho para garantir que mantemos todas as bolas no ar. É possível, mas não é sempre fácil”.
Para que este malabarismo funcione, é essencial termos do nosso lado as pessoas certas. Além da retaguarda familiar e da ajuda remunerada, quando o orçamento permite, defende que as equipas são elementos chave que garantem o sucesso desta fórmula. Recordando o surto vivido na unidade em janeiro deste ano, Catarina Cerqueira reconhece a importância da “família, que lhe permitiu sair de cena”, num momento de enorme fragilidade e incerteza, e de colegas de profissão que serviram de “pilares de apoio técnico no terreno”. “Eles faziam uma vida normal em casa e isso transmitia-me segurança. Sabia que só tinha de ir a casa dormir, comer e libertar a tensão para depois regressar recuperada”, reconhece com gratidão.
Alguns percursos de vida cruzam-se com os da instituição que servem. Teresa Alves, 49 anos, nasceu na maternidade da Misericórdia de Oeiras, frequentou um infantário da Santa Casa e construiu aqui a sua carreira profissional, com projetos de intervenção junto da população sem abrigo, definidos de raiz por si a partir de necessidades identificadas no concelho. Pelo caminho, cresceu como mulher e socióloga, sem nunca abdicar do tempo dedicado à família. “Aceito desafios e projetos que fazem sentido para mim, mas tenho de ter tempo para o resto, a minha família está em primeiro lugar”.
Num meio dominado pelo género feminino, nunca sentiu obstáculos por ser mulher. “Temos de trabalhar para ter o respeito dos outros. As mulheres nesta área são muito respeitadas. Temos de nos valorizar por aquilo que fazemos e celebrar as nossas conquistas todos os dias. No concelho de Oeiras, as instituições são quase todas coordenadas por mulheres”.
Priorizar a carreira ou a vida pessoal e familiar, assumir cargos de chefia, ter ou não ter filhos são opções válidas para mulheres e homens, desde que assumidas com liberdade e convicção, dizem as nossas interlocutoras. A escolha de Raquel Vale, 48 anos, inclui todas estas variáveis. Engenheira de formação, acumulou durante vários anos as funções de vereadora na autarquia de Esposende e consultora (gestão de qualidade) e, em janeiro de 2020, assumiu a provedoria da Misericórdia de Fão. “Sempre tive retaguarda, familiar ou remunerada, e o marido facilitou a conciliação, mas nunca descurei as obrigações de mãe. Depende de cada uma de nós, há mulheres que preferem não ter cargos de chefia, da mesma maneira que há homens que optam por fazê-lo, mas também acredito que cabe à mulher lutar pelos seus objetivos”.
Mais do que na igualdade de género, acredita que há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à conciliação da vida pessoal e profissional nas empresas. “Ainda há muito a fazer e a pandemia pode ter aberto portas para isso, com o teletrabalho e desfasamento de horários”. Para Raquel Vale, faz sentido celebrar as conquistas e sacrifícios das mulheres para ter acesso ao voto, ao trabalho e a outras oportunidades, mas considera “redutoras iniciativas que esvaziam o sentido da data como oferecer batons, flores ou idas ao cabeleireiro”.
Os progressos são feitos no dia-a-dia, mas as garantias não são absolutas, restando-nos manter alerta a retrocessos e reafirmar a igualdade no futuro a que temos direito.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas