Em poucos minutos, a varanda da sala de convívio do lar da Misericórdia da Marinha Grande, nas Vergieiras, é transformada numa secção de voto improvisada. A um canto, monta-se um biombo, para garantir a privacidade, e uma mesa. Numa secretária ao lado, há desinfetante e canetas, que acabam por não ser usadas porque cada um dos eleitores vem já devidamente munido com a sua própria esferográfica e o cartão do cidadão, como mandam as regras.
Joaquim Pereira é o primeiro a exercer aí o seu direito de voto, mas antes a equipa de recolha, constituída por três funcionários da Câmara Municipal, dirige-se à janela do quarto de Fátima de Jesus, que, por ter saído da instituição para ir a uma consulta, está em isolamento. Do lado de fora, Patrícia Ribeiro, animadora social do lar, dá as instruções: “Dobre em quatro e coloque dentro do envelope”.
O subscrito é depois inserido num outro envelope, selado pela equipa do município, que entrega um comprovativo à eleitora. “A prova de que votou e de que recebemos o seu voto”, explica um dos funcionários municipais, por trás de toda a panóplia de equipamentos de proteção individual: bata, fato completo, máscara, viseira, óculos e proteção para o calçado. Mas, mesmo disfarçado, um dos utentes reconheceu, entre a equipa, um antigo colega de escola, quando este se identificou. “Há tantos anos que não o via”, confidencia o funcionário, acenando ao utente através da janela.
O processo de votação repete-se sete vezes, tantas quantos os utentes da instituição que participaram nesta eleição para Presidente da República, a primeira em que foi montado um sistema de recolha de voto porta a porta, abrangendo estruturas residenciais para idosos, mas também pessoas em confinamento.
“Já está”, diz José Gameiro, acabado de sair detrás do biombo, onde demorou menos de um minuto a colocar a cruz. “Não foi preciso pensar. Foi só o tempo de conferir onde tinha de assinalar”, atira o utente, de 83 anos, que se orgulha de “nunca” ter falhado uma eleição, contando que, mesmo no Brasil, onde viveu durante 43 anos, votou sempre. “É a minha obrigação como cidadão”, justifica, admitindo que chegou a pensar que, desta vez, “com toda esta coisa da pandemia”, não iria exercer esse direito. Por isso, ficou feliz com a oportunidade.
Também Leonor Figueiredo, de 83, já tinha colocado de lado a ideia de votar, não só devido à pandemia, mas, sobretudo pelas suas dificuldades de locomoção. “Com o andarilho, não me atrevia a ir. Assim, sempre contam mais um voto.”
E podiam até ter sido mais votos a contabilizar “se o processo fosse mais fácil”, diz Patrícia Ribeiro, revelando que o lar da Misericórdia da Marinha Grande não conseguiu inscrever quatro utentes, que residem na parte privada. “Liguei várias vezes para a linha de apoio, mas como os residentes não estão no sistema da Segurança Social, por não terem comparticipação, não me conseguiram ajudar”, refere a técnica.
Menos sorte teve a Misericórdia de Leiria, onde não foi possível inscrever nenhum dos cerca de 30 utentes que tinham manifestado vontade de votar. Diogo Batalha, administrador da instituição, conta que na segunda semana de janeiro receberam um link da Segurança Social para fazer a inscrição.
“Passados três dias, a Câmara informou que tínhamos de preencher um outro formulário referente à mesa de voto. Esta segunda-feira, formos informados de que tinha dado erro. Contactámos as duas entidades, mas ninguém nos conseguiu ajudar. Resultado: nenhum utente pode exercer o direito de voto”, lamenta Diogo Batalha, frisando que no Lar Nossa Senhora da Encarnação já estava “tudo preparado” para que a votação acontecesse, com locais e circuitos “bem definidos”.
O caso da Misericórdia de Leiria está longe de ser isolado, havendo queixas de outras instituições que sentiram dificuldades idênticas. Sandrina Garrucho, chefe da Divisão Administrativa da Câmara de Leiria, adianta que neste concelho, onde só da rede solidária existem cerca de 30 lares, participaram no voto antecipado apenas 35 utentes de sete instituições. “Houve relatos de dificuldades no processo de inscrição”, refere a técnica, que coordenou as sete equipas do Município de Leiria que andaram no terreno a fazer a recolha do voto antecipado devido a confinamento.
Apesar de nem tudo ter corrido bem, Patrícia Ribeiro reconhece mais-valias ao processo, por permitir o exercício de voto “a algumas pessoas que, em circunstâncias normais, não o iriam fazer devido a limitações físicas”. É esse o caso de Fernanda Alexandre, também utente da Misericórdia da Marinha Grande, que se move com o apoio de um andarilho. “Preferia que eles não tivessem vindo cá pelas razões que vieram e que não tivéssemos esta pandemia. Mas assim cumpri o meu dever. Se bem, logo se verá.”
Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva