No final de 2020 vivia-se em Portugal ainda a incerteza do primeiro ano da pandemia Covid-19. Os casos aumentavam, quebravam-se recordes negativos sucessivamente e os lares das Misericórdias passavam por uma situação sem precedentes. Todos os dias eram uma emergência, cada espaço encerrava em si um ecossistema à parte. Enquanto isso, no lar de idosos da Misericórdia de Espinho entrava uma pessoa nova, não utente, mas trabalhador, não do lar, mas do audiovisual: o realizador Pedro Magano, que registou no documentário ‘Lar’ um documento único sobre a vida no seio do lar numa altura limite.

Antes do trabalho existe a curiosidade. Sara Ramos, diretora geral da Misericórdia de Espinho, já conhecia Pedro antes das gravações e foi em conversas nos primeiros meses da pandemia que este “manifestou o interesse em fazer o registo para a prosperidade de um momento atípico, não apenas no lar, mas na sociedade”.

Pedro procurava a possibilidade de entrar num dos locais mais fragilizados naquele contexto de vírus. Nas suas palavras, “foi inevitável como documentarista, foi aquele impulso de fazer parte da história, para que ficasse registado o que aconteceu naquele lar e com aquelas pessoas”.

Por regra, Sara confessa que gosta de desafios, mas não lhe cabia aceitar este. Numa das reuniões quinzenais que a Mesa Administrativa fazia por aquela altura, à distância, ficou tomada a decisão: foi autorizada a entrada do realizador para “trabalhar com todos os cuidados, devidamente instruído e equipado, da mesma forma que as funcionárias”.

Equipado a rigor, entre novembro de 2020 e março de 2021, Pedro Magano acompanhou de perto a vida naquele lar, sozinho, de câmara na mão. Na primeira semana não filmou para que as pessoas o reconhecessem e se habituassem à sua presença. Depois, Pedro foi-se “aproximando das pessoas” a pouco e pouco, num “exercício de aproximação e afastamento: não podia aproximar muito por causa da Covid-19, mas tinha de aproximar por causa do áudio da câmara”.

Ao longo da hora e doze minutos do filme, acompanhamos várias linhas paralelas que “dão ao documentário uma narrativa temporal” através “das pessoas com mais carisma e mais para dar”. Uma das pessoas cuja “resiliência de vida” sobressai é a dona Emília: leva a sua rotina entre as leituras, a escrita e os ensaios de uma peça de teatro com um diálogo entre a cidade e o campo. Como lhe diz a parceira de cena, trabalhadora do lar: “Andar sempre de um lado para o outro a fazer isto, a fazer aquilo, ajuda muito.”

Quem também não fica quieto é outro dos protagonistas, o senhor Cândido, que faz a sua rotina entre pincéis, cola branca e paciência, muitas vezes de catatua ao ombro, na construção de uma cidade em miniatura que, com o tempo, vai ganhando forma. Dia após dia, marcam no lar uma rotina de pequenos atos de resistência contra a imobilidade. A catatua acaba por marcar o ritmo do filme, aparecendo repetidamente junto a um relógio de parede que teima em não andar. “Fez-me crescer muito e fez-me ver a finitude dos dias e a espera”, confessa o realizador.

Na companhia destes residentes, Pedro encontrou no lar “uma espécie de hotel” por onde o guiou a curiosidade, que o levou a descobrir espaços essenciais, mas recônditos, onde os sacrifícios dos trabalhadores saltam para primeiro plano: a sala da manutenção, a lavandaria, a cozinha, um cabeleireiro ou até mesmo os gabinetes, lugares vulgares, onde assistimos a discussões em “momentos chave” como “a discussão sobre a capela que acabou por ser a ala Covid-19 e o receio da reação do padre”, relembra a diretora técnica.

O esforço conjunto daquela equipa é marcante na altura do Natal, em que os gestos mais simples, como o ajudar um utente a atender videochamadas no telemóvel ou o ensaio de cânticos natalícios, assumem dimensões maiores que a vida para levar “toda a experiência positiva da época para dentro de portas”, conta Sara Ramos.

E se este é um esforço que já na altura não passou despercebido, com o documentário fica para a posteridade esta sensação de segurança que o próprio realizador sentiu durante os cerca de 20 dias de rodagem ao longo de cinco meses, quando lá fora reinava o caos silencioso: “Eu senti uma paz muito grande ali e toda a gente se sentia acarinhada e protegida, os dias passavam assim lentamente, sem grandes sustos. Foi o que eu senti e é o que está no filme”.

Este que é um “registo histórico e não um documento artístico”, como o descreve o autor, encontrou o seu ponto final com o momento da vacinação no lar: o fecho de um ciclo. Pouco depois foi mostrado aos utentes do lar uma primeira versão, mas só a 24 de maio deste ano o documentário teve a primeira mostra pública, no Cinema Batalha, no Porto. Por força de compromissos da Misericórdia, apenas alguns trabalhadores conseguiram estar presentes na sessão, o que só impulsionou mais a vontade de levar o filme “para uma sala em Espinho, para as famílias conseguirem perceber o que foi a realidade na altura e sobretudo para homenagear os nossos e todos os trabalhadores de lar do concelho que passaram por aquilo”. E assim, no passado dia 24 de julho, teve lugar no Centro Multimeios de Espinho essa homenagem, sob o carinho e a proteção da comunidade, que fez questão de se associar àquele momento.

Voz das Misericórdias, Duarte Ferreira