Os profissionais, que partilharam com o VM a sua experiência no terreno, relatam “situações limite”, de exaustão física e emocional, depressão e ansiedade, que decorrem da menor retaguarda familiar e social, diminuição das saídas ao exterior e serviços presenciais. Os familiares estão menos presentes nas rotinas e os que estão na primeira linha de cuidados sentem-se assoberbados pela responsabilidade e medo de transmitir o vírus em casa.
Fernanda Serafim (Lousada) não sai de casa com medo de contagiar o marido, Cármen Ferreira (Vagos) não abraça o filho com o “pavor” da doença que se dissemina pelo mundo, Inês Guerreiro (Almada) deixou de ir ao supermercado dominada pelo “terror de infetar a mãe” e Luísa Pinto (Marco de Canaveses) sente-se mais isolada sem os seis filhos por perto.
“Muitos deles já tinham dificuldades e medo de cuidar, devido à baixa literacia nesta área, e isso foi agravado com o medo de serem possível fonte de contágio”, justifica Lília Pinto, psicóloga e gestora do “Serviço Móvel de Saúde”, da Santa Casa de Marco de Canaveses.
Em Lousada, a equipa do Centro de Apoio ao Cuidador Informal (CACIL) comprova esta necessidade das famílias com números concretos: aumento de 25% de procura (160 para 200 cuidadores), entre junho e novembro de 2020.
Para quem cuida de pessoas com demência, o impacto do confinamento forçado, afastamento das rotinas e ligação com a comunidade foi “especialmente negativo” devido ao agravamento dos estados de dependência e falta de apoios especializados no domicílio. Sofia Valério, coordenadora do Gabinete Cuidar Melhor e do Centro Social da Trafaria, da Misericórdia de Almada, constata o “desespero das famílias que não encontram no tradicional apoio domiciliário (da rede solidária) o acompanhamento adequado às situações de demência” e que, por isso, procuram a institucionalização em lar como solução de recurso.
Os centros de dia, que garantiam apoio diurno e alívio dos cuidadores, permanecem fechados em muitos pontos do país, por não reunirem condições de segurança, e os familiares que trabalham fora de casa vivem num “sufoco permanente”, como nos relata Nuno Queirós, da Santa Casa de Valongo.
O animador visita todas as semanas os idosos no domicílio, para compensar a ausência prolongada, desde o encerramento em março, e escuta os lamentos dos que assistem ao declínio dos seus idosos. “Muitos desdobram-se em 20, vão lá de manhã, à hora de almoço, final da tarde, revezam-se com os irmãos e procuram cuidadores formais”.
Para responder ao aumento da procura e aumento do isolamento dos cuidadores, as equipas das Misericórdias reforçam o apoio psicossocial, através de visitas ou contactos telefónicos, e adequam a sua intervenção às necessidades que identificam em cada momento.
“Mais do que a intervenção específica de todas as áreas – terapia ocupacional, psicologia, estimulação cognitiva, enfermagem, fisioterapia, entre outras -, tentamos adaptar-nos às necessidades atuais e ao que conseguimos fazer, fazemos a entrega de bens essenciais e medicamentos, quando os familiares não podem entregar, e contactos semanais telefónicos para avaliar o estado de saúde e bem-estar junto do idoso e cuidador”, adianta Lília Pinto, psicóloga do Serviço Móvel de Saúde (Marco de Canaveses).
Apesar de todo este esforço e criatividade, os profissionais reconhecem que a proximidade que caracteriza a relação entre as equipas, utentes, cuidadores e comunidade, eixo central nestes serviços, fica comprometida com as novas dinâmicas sociais e regras de segurança.
A equipa do projeto “Memorizar” (Vagos), dirigido a cuidadores e pessoas com demência, admite que, “com o advento da pandemia, a proximidade passou a ser uma palavra proibida e os alicerces da confiança criada ao longo dos meses ficaram sob a mira da apreensão”. O facto de a maioria das pessoas apoiadas (44) se inserirem em grupos de risco obrigou a redefinir estratégias para derrubar barreiras físicas e “manter o cordão umbilical que unia cuidadores e doentes ao projeto”. As sessões de grupo deram lugar às individuais, os contactos presenciais aos remotos e as reuniões físicas de equipa passaram a ser virtuais.
A resiliência de todos foi testada ao limite, mas no final do trajeto garantem que foi possível fortalecer laços entre doentes, cuidadores, equipa e sociedade. Notaram, contudo, que os cuidadores se ressentiram da falta dos encontros sociais e apoio familiar, o que levou a “sentimentos de solidão, fragilidade, medo e insegurança face ao estado clínico do familiar”.
As histórias de vida marcadas pelo sacrifício, altruísmo e amor são, mais uma vez, colocadas à prova. Depois do luto da doença, que lhes levou a pessoa que conheceram toda a vida, são forçados a readaptar novamente as suas rotinas para se proteger de um novo vírus. Recomeçar do zero, aprender a cuidar melhor, num contexto novo e inesperado. No fim, nada voltará a ser como era. O passado é hoje uma miragem.
“No fim, era outra pessoa e a minha família estava moribunda. Procurei ajuda para outros, até perceber que era eu quem precisava dela. E pontualmente reconheço-a, não a pessoa de agora, mas a minha mãe. Por isso sou eternamente grata”, reconhece Inês Guerreiro, num testemunho sobre o Gabinete Cuidar Melhor (Almada).
Gabinete Cuidar Melhor
Almada
O Gabinete Cuidar Melhor (GCM) nasceu de uma parceria com a Associação Alzheimer Portugal, no final de 2018, enquanto resposta comunitária, pluridisciplinar e de proximidade dirigida a pessoas com demência e cuidadores. Desde o início da pandemia, o GCM reforçou o acompanhamento através de contactos telefónicos para aferir as necessidades dos utentes e partilhar estratégias para lidar com alterações de comportamento dos doentes e prestar suporte emocional aos cuidadores, ao nível de sintomas depressivos e ansiedade.
Serviço Móvel de Saúde
Marco de Canaveses
O Serviço Móvel de Saúde, criado em 2015, apoia idosos com doença crónica, sem retaguarda social e familiar e em situação de isolamento e respetivos cuidadores com uma equipa multidisciplinar que organiza a sua intervenção em três eixos de ação: aumento da literacia, intervenção centrada no contacto com a natureza e reabilitação no domicílio. Durante a pandemia, a equipa limitou as visitas presenciais, mas reforçou os contactos telefónicos e vai disponibilizar vídeos educativos para capacitar cuidadores.
Memorizar
Vagos
O projeto Memorizar, iniciado em janeiro de 2019, presta apoio a pessoas com demência, cuidadores e comunidade em geral com o objetivo de adiar a institucionalização e capacitar os familiares. A intervenção é assegurada no domicílio por uma equipa multidisciplinar (neurologista, psicólogo clínico, neuropsicólogo, terapeuta ocupacional e assistente social) e abrange 44 pessoas. Desde março, as dinâmicas de grupo deram lugar a sessões individuais, os contactos presenciais a remotos e as reuniões de equipa passaram a virtuais.
Centro de Apoio ao Cuidador Informal
Lousada
O Centro de Apoio ao Cuidador Informal surgiu em fevereiro de 2019 para capacitar e diminuir a sobrecarga dos cuidadores, em articulação com parceiros da comunidade. A equipa assegura apoio psicossocial, dinamiza grupos de capacitação e apoia na requisição do estatuto de cuidador informal. Desde março, acompanharam famílias com casos de Covid-19, na compra de medicamentos e alimentos, fizeram centenas de atendimentos telefónicos e estão a preparar vídeos com instrumentos práticos para os cuidadores.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas