Através do projeto ‘Felicita-me’, a Misericórdia de Ferreira do Alentejo visa, através do SAD, contrariar a solidão, o isolamento

Quando as auxiliares do apoio domiciliário lhe bateram à porta naquela manhã soalheira de segunda-feira, Francisco Carlos Guia nem imaginava o que estava para vir. O dia 8 de março era de aniversário para este octogenário de Ferreira do Alentejo e, por isso, foi surpreendido com um pequeno bolo decorado por uma vela e um “parabéns a você”, cantado com muita alegria pelas visitantes.

“Não estava nada à espera, mas soube-me mesmo bem. As meninas são simpáticas e alegres e fizeram-me esta surpresa de cantar os parabéns no dia em que fiz 87 anos”, conta com boa disposição este antigo proprietário de uma oficina de mármores em Ferreira do Alentejo, no distrito de Beja, que é viúvo e vive sozinho, sendo raras as saídas de casa. “Dou uma voltinha de vez em quando, só para ‘desemperrar’ as pernas”, garante.

A pequena festa de aniversário quebrou a rotina solitária de Francisco. Uma surpresa “muito agradável” preparada pelo serviço de apoio domiciliário (SAD) da Santa Casa da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, no âmbito do projeto ‘Felicita-me’. O SAD conta atualmente 53 utentes, incluindo os que se encontram domiciliados em virtude do encerramento dos centros de dia, e a iniciativa nasceu no final do ano passado “num contexto de alteração do paradigma da resposta social” do serviço, que ganhou uma nova importância em tempo de Covid-19.

“O contexto de pandemia veio agravar a solidão, o isolamento e a dispersão do afeto familiar, constituindo-se a equipa de SAD, em grande parte dos casos, a família de coração diariamente presente. Por isso, era fundamental mudar a nossa prática e o ‘Felicita-me’ foi a ideia-chave”, explica Daniela Góis, 28 anos, diretora técnica do SAD da Misericórdia alentejana.

Segundo esta responsável, tudo partiu do pressuposto que os utentes deste serviço “precisavam de ser envolvidos noutro tipo de atividades que englobassem domínios que fossem além do autocuidado”. Assim nasceu o ‘Felicita-me’, que “cujo objetivo é surpreender as pessoas, proporcionando-lhe um momento diferente numa ótica de proximidade, valorização e empatia pelo outro”.

“Afinal, quem de nós não gosta de ser surpreendido?”, questiona Daniela Góis.

O projeto tem ainda pouco tempo de existência, mas a diretora técnica do SAD da Misericórdia de Ferreira do Alentejo faz um balanço “muito positivo”, comprovado “através de emoções muito transparentes, não fosse este um momento surpresa”.

“Pintar sorrisos é o mote do projeto e ficamos com o coração ainda mais quentinho quando observamos que estes pequenos gestos fazem muita diferença na vida de quem cuidamos diariamente”, diz Daniela Góis, que acrescenta: “Mostrar que realmente nos importamos com o bem-estar do outro é valorizá-lo em todos os aspetos, sobretudo nas dimensões mais abstratas”.

Na visão desta responsável, “ao fazê-lo estamos a celebrar alguém com história”, rejeitando a ideia de que “celebrar o aniversário de alguém” seja “banal”. “E se vos dissermos que na nossa prática e contexto territorial é uma inovação, sobretudo nas camadas mais envelhecidas? Estamos a valorizar a pessoa enquanto pessoa que é. Como não ficar feliz?”, afirma.

O projeto ‘Felicita-me’ ganha ainda uma outra dimensão pelo atual período pandémico, com os idosos remetidos a casa, afastados das respetivas famílias há já longos meses. Demasiados meses.

“O contexto de pandemia e consequente confinamento veio agravar e alastrar ainda mais o problema da solidão e do isolamento de muitos agregados familiares. Por essa razão, a pertinência do ‘Felicita-me’ chegar a todos de igual forma com um duplo objetivo: valorizar o outro numa vertente de proximidade, mas também e sobretudo dar visibilidade a quem recorrentemente tende a estar esquecido e foi esquecido, afirmo, neste contexto de pandemia por parte do Estado”, argumenta Daniela Góis.

Para a diretora técnica do SAD da Misericórdia de Ferreira do Alentejo, “estas pessoas existem e têm tantos ou mais problemas do que a população-alvo que se encontra em contexto residencial”, sendo urgente “ver e intervir” junto destas pessoas. “Foi nesta linha de pensamento que o projeto foi criado. Atenuar a discrepância sentida em torno desta situação e promover estes momentos enquanto equipa é a nossa missão”, afiança.

Tudo isto leva Daniela Góis a afirmar que o ‘Felicita-me’ é apenas “o ponto de partida” de uma equipa “empenhada em continuar a fazer mais numa perspetiva de melhoria contínua com os recursos disponíveis”. Por isso, diz, “o projeto vai ser alargado pós-pandemia numa linha de intervenção técnica diferenciada no nosso contexto territorial”.

“Já estão a ser equacionados outros subprojetos, pese embora seja necessário um trabalho multidisciplinar”, anuncia, concluindo com uma citação de José Saramago: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”.

Voz das Misericórdias, Carlos Pinto