No Lar Nossa Senhora do Amparo, em Aldeia de Joanes, já ninguém estranha a presença do senhor Manuel, Manecas, como é conhecido e chamado pela própria esposa que, antes da pandemia, visitava, religiosamente, todos os dias à tarde. Depois de lhe fazer companhia ao jantar, despedia-se, e ia para a casa que os dois partilharam durante 50 anos.
Quando há oito, Adélia, é assim que se chama a mulher por quem se apaixonou há mais de 60 anos, começou a perder a memória, foi “um caso sério”, até se render às evidências e perceber que a esposa, a quem tinha sido diagnosticado Alzheimer, precisava de cuidados e assistência 24 horas por dia.
“O pior foi quando tive que a trazer da nossa casa para aqui, e só a via uma vez por dia, foi uma tristeza muito grande para mim, mas enchi-me de coragem.” Foi a primeira vez que a perdeu: “Perdê-la para esta doença! Perdê-la já a perdi há muito tempo, só não a perdi de vista, porque, de resto, venho e consolo-me por revê-la.”
Nos últimos dois meses, não podendo entrar no lar, vai revê-la à janela, faça chuva ou faça sol. Naquele dia, fazia um misto dos dois, por isso o arco-íris decidiu aparecer, no momento em que Manuel Ramos espreitou pela janela e chamou por ela: “Adélia, é o Manecas, como estás, hoje? Abre os olhinhos”.
E ali fica, embevecido, a olhar para ela. Não sabe se o ouve, nem sequer se o vê, mas tem esperança que o sinta, presente, todos os dias. “Vê-la já é bom”, desabafa de olhos marejados, recordando a mulher com quem já namorou à janela. “Só namorámos um ano”, recorda. Não foi preciso mais, tinham a certeza do amor que os unia e que os levou a criar quatro filhos. “Ela tinha muito amor à vida, o que ela era e foi durante toda a vida, para mim e para todos os familiares, hei de recordá-la enquanto viver.”
E lá foi, debaixo do colorido arco-íris, tratar do seu pomar de cerejeiras, onde se entretém a passar os dias, até chegar a hora da visita, voltar à janela, e chamar pela Adélia, na esperança que ela o sinta, na esperança de ainda a poder abraçar, quando tudo passar.
Noutro lar da Misericórdia do Fundão, outra janela separa outras emoções, as mesmas saudades. Não fora o dia da liberdade e do aniversário da mais velha utente do lar de Nossa Senhora de Fátima, e seria um dia como outro qualquer, desde que começou a pandemia. Mas, Lucinda completava 105 anos e a Misericórdia preparou-lhe uma festa, com direito a bolo de aniversário, que estranha ali estar: “mas eu não comprei bolo nenhum”.
Já tinha perguntado pelos seus, “os meus hoje não vêm cá?”, por isso, ver a filha através da vidraça foi uma emoção, estendeu-lhe a mão, tocou-a, choraram e roubaram umas lágrimas a quem assistiu.
A filha, Natália Figueiredo, que antes da pandemia visitava a mãe todos os dias, tinha planeado uma festa para os simbólicos 105 anos da mãe, com toda a família “Foi muito diferente, este ano pensava que fosse melhor, aconteceu isto. Tem sido difícil, vou telefonando, há quanto tempo não a via”. O poeta teria acrescentado: “…e que saudades Deus meu!”.
Queria ter comprado um presente à mãe, mas, com tudo fechado, naquele sábado, 25 de abril, em que a liberdade esbarrou no vidro da porta, cometeu um pecado “roubei umas flores de um jardim para trazer à minha mãe”.
Além da filha, Lucinda também viu um dos seis netos. Rogério Galante costuma ir ver a avó em ocasiões especiais como esta e revela que “é fantástico e delicioso” ter uma avó com 105 anos, da qual guarda, em especial, a memória de um verão passado na sua casa.
A diretora do lar, Sara Alvarinhas, admite que Lucinda é uma guerreira. “Ela não andava muito bem, antes da Covid-19, mas, mais uma vez, nos surpreendeu e deu a volta”. Agora está bem “para a idade e para aquilo que tem passado, porque tem tido alguns percalços em termos de saúde”.
Sara Alvarinhas admite que a instituição atravessa uma nova realidade dentro de portas. “Somos o único contacto, não podemos ser só os técnicos, somos a família deles e a ponte com os familiares, e temos que estar preparados para lidar com uma grande carga emotiva, dos dois lados”.
Uma das formas encontradas para deixar entrar e sair as emoções foi através da janela virtual. “Há mais de um mês que optámos pelas videochamadas para estarem em contacto com as famílias, para muitos foi a primeira vez”.
A diretora recorda alguns episódios divertidos. “Tivemos uma senhora que, a primeira vez, ficou apática, só se benzia e não percebia como é que era possível o filho estar dentro daquela caixa. Mas, agora já não estranham e têm conversas longas, tem sido muito positivo.”
Claro que nada substitui um abraço, mas por enquanto as emoções entram e saem através da janela, seja real ou virtual.
Nota: À data da realização desta reportagem, ainda não era público que as visitas seriam retomadas a 18 de maio.
Voz das Misericórdias, Paula Brito