A rádio e a televisão levaram os acontecimentos de Lisboa ao concelho de Grândola, vila que viria a batizar uma das senhas do movimento dos capitães que levou à instauração da democracia e à queda do Estado Novo.
As reminiscências desse dia-noite perduram no ouvido de Manuel Casimiro. “Andava atrás do gado e lembro-me de ouvir no rádio”, recordou o pastor de Pedrões, Canal Caveira, que acordava “às seis da manhã” e saía de casa acompanhado do cão. “Era o vira-tudo. Mandava fazer e ele virava tudo”, sorriu.
A história detonada na capital demorou uns dias a ser percecionada no Alentejo e em casa de Manuel Casimiro. “A minha mulher também não percebia nada daquilo, estávamos no monte, com três filhas pequeninas”, relembrou.
“Tinha uma televisãozinha, estava sempre acesa, acompanhava as notícias, mas a gente não percebia o que estava a passar. Só falávamos que tinha havido um golpe de Estado”, assumiu. A poeira assentou e “ao fim de uns dias começamos a ver o que se passava e toda a gente falava, é pá, isto dá guerra”, exclamou.
Não deu. Manuel Casimiro faz contas de cabeça para acertar na idade à altura dos acontecimentos. “Tenho 87, faço 88 no dia 10 de julho, é tirar 50 anos”, solicitou o “número 11” de 12 irmãos, nascido em Monte Novo e que abraçou uma novidade de Abril. “Votei nas primeiras eleições e daí para cá tenho votado sempre”, sublinhou o residente no lar “há três anos e meio”.
‘Só se via gente, um alvoroço’
“Tenho 84 anos, nascida a 27 de março de 1940, para os lados de Santo André velho. Já passei uma boa história e bem complicada”, resumiu Maria Luísa Estevão.
Na agricultura “até os 31 anos” nas “lavras dos Espíritos Santos”, onde “plantava e aceifava arroz, debulhava-lo e levava-lo à eira”, numa época em que as crianças eram criadas “descalças, rotas e nuas”, descreveu. “Naquele tempo era assim, o principal era ter um trabalhinho para ganhar qualquer coisa para a sopa”, assumiu.
Deixou essa vida para trás. “Armei-me em comerciante e fui para o negócio”, atestou. “Na altura, quando foi o 25 de Abril, tinha uma taberna, no Brejo da Carregueira”, recordou, “comprada em 1971”, particularizou. Fixa-se na data. “Estava a dormir e no dia seguinte de manhã, na televisão só se via gente, um alvoroço, uns em cima uns dos outros, com cravos na mão e numa espingarda, estava lá o Salgueiro Maia, que me lembro bem e o Otelo”, identificou.
O ecrã mágico atraía o povo à taberna. “Iam todos os dias para ver e falar, principalmente a malta mais velha”. As dúvidas persistiam na cabeça de Maria Luísa. “Não sabíamos bem o que estava a passar. Vivíamos num meio atrasado, não sabíamos se seria melhor ou pior. Para pior não foi”, assegurou.
“As mães naquele tempo tinham muito amor com filhos. O que vai acontecer agora? Tenho a moça pequena, será que vêm também para aí com as espingardas”, pensou esta utente “desde julho”.
Não vieram. E um ano depois veio o primeiro ato eleitoral. “Lembro-me muito bem das primeiras eleições. Votei e aquilo foi uma loucura, era tanta gente para votar. Fiz um risco e já nem me lembro em quem votei, não percebia nada de política, nem se falava de política, como é que a gente sabia?”, interrogou-se.
‘Derrubaram o governo’
“No 25 de Abril estava em casa. De manhã, a minha senhora foi à mercearia em Canal Caveira e disse-me que tinha havido um golpe de Estado”, confessou Francisco Pereira, 88 anos. “Ela não sabia e eu também não. Palpitei, se calhar derrubaram o Governo”, profetizou.
O trabalho nos caminhos-de-ferro, em Canal Caveira, abriu-lhe pistas ao sucedido. “Mal entrei ao serviço falou-se logo nisso. Apareceram lá dois tipos, provavelmente pertenciam à CP, passaram por lá, a vigiar e a falar”, asseverou.
“A minha mulher tinha dito aquilo do golpe de Estado. Não sabíamos o que era. E continuámos a vida com a revolução, não é?”, continuou Francisco Pereira, cujas memórias da época recuperam o primeiro voto. “Tinha trinta e tal anos quando votei, em Canal Caveira. E voto desde sempre”, sentenciou o residente no lar da Misericórdia de Grândola “há sete anos”.
A Horácio Pereira, provedor da Misericórdia de Grândola, a notícia da Revolução dos Cravos chegou pela voz de espanto de outros, de manhã cedo, mas poderia ter sido anunciado horas antes, quase em tempo real, por ondas hertzianas.
“Acompanhei o meu pai a uma feira que se fazia anualmente, no dia 25 de abril, em Alter do Chão. Fomos às três ou quatro da manhã e nunca ligámos o rádio. Quando chegámos, não se falava de outra coisa senão da vila e da música Grândola Vila Morena”, lembrou. “Foi aí que apercebemos que tinha havido uma revolução”, resumiu Horácio Carvalho Pereira.
Voz das Misericórdias, Miguel Morgado