A Misericórdia de Guimarães arrancou com aulas de alfabetização. A primeira turma já está formada e é na sua maior parte formada por utentes de um dos lares de terceira idade da instituição.
Segundo Paulo Amaral, vogal da assembleia da Misericordia, “as aulas arrancaram há cerca de quinze dias [ainda durante o mês de fevereiro] e realizam-se uma vez por semana durante uma hora e meia”. A ideia inicial abrangia duas frequências semanais, mas a periodicidade foi repensada em consideração ao público em causa. “Seria cansativo”, frisa.
Uma segunda turma arranca em março, já envolvendo outros membros da comunidade, pessoas profissionalmente ativas, mas que se afastaram de forma prematura da escola. “Querem aprender o mínimo para coisas tão simples como tirar a carta de condução, poder assinar os seus próprios documentos ou escrever uma carta à família por altura do Natal”, conclui.
É a primeira vez que um projeto nestes moldes é implementado pela Misericórdia de Guimarães, sublinha a técnica Maria Rui Sampaio. “Os monitores de animação já haviam promovido algum trabalho lúdico-educativo, mas num sistema muito diferente da formalidade de uma sala de aulas”.
Como surgiu a ideia para esta iniciativa? “Identificámos que num dos nossos lares, numa zona mais rural, a taxa de analfabetismo entre os utentes ronda os 80%. Temos em vista uma terceira turma exclusivamente dedicada ao lar de Donim, mas carecemos de mais voluntários, já que, de momento, dispomos somente de duas pessoas dos nossos órgãos sociais para lecionar as aulas”.
As aulas têm de ser personalizadas mediante o nivelamento de aprendizagem dos alunos, que em alguns casos pode ser bastante diferenciado. Enquanto alguns têm conhecimentos básicos de leitura e escrita, atenuados pela idade e pelos anos decorridos desde a aprendizagem, outros podem não ter mesmo qualquer conhecimento das primeiras letras.
O feedback inicial tem-se revestido de um certo saudosismo dos tempos da escola. Fomos à sala de aula conferir uma das primeiras sessões desta turma modelo, que acontece na Casa de Repouso de S. Paio. Quem nos recebe é a professora primária aposentada Florinda Carvalho, presidente do conselho fiscal da Misericórdia.
“Só tivemos duas aulas, estou ainda me apercebendo do caráter e da evolução destes meus ‘novos’ alunos. Alguns tem a antiga terceira ou a quarta classe, mas nota-se que estão muitos esquecidos. O que vamos tentar é recuperar aquilo que sabiam e ensinar os que não sabem absolutamente nada”.
Na sala, divididos em grupos e apoiados pela professora, os utentes debruçam-se numa ficha cujo teor são as vogais. “A outra colega envolvida era professora de francês, mas vamos ter também uma colega licenciada em matemática que poderá nos vir a apoiar para ajudar a recordar as contas”, revela Florinda.
“Já vamos no i”, conta-nos Maria José Machado, de 75 anos, que está na mesa dos mais adiantados. “Completei a quarta classe com 11 anos. Costumo ler o jornal, mas quase nunca escrevo, ando esquecida”. Ao seu lado, Maria Fernanda, de 71 anos, revela as dinâmicas da formação das turmas. “Estudei até ao sexto ano, mas como as minhas amigas vieram eu também quis vir”. Amâncio Silva, de 77 anos, larga a sua ficha e conta-nos da sua epopeia como estofador e operário fabril. “Trabalhei na Citroen e também na Michelin. Fiz a terceira classe em Portugal e fiz o quarto ano em França. Tenho relembrado muita coisa aqui, mas é muito diferente da maneira como aprendíamos na escola”.
A jovem Mafalda Pereira está na outra ponta da sala, numa mesa de nível intermédio. “Isto está a correr bem, mas tem sido um bocadinho difícil. Eu não sei ler muito bem ainda”. Outra ‘colega’ da mesa, ainda que não se expresse verbalmente, anima-se também a mostrar com orgulho o seu progresso em sublinhar o contorno das vogais.
Ainda que numa fase embrionária, o projeto irá certamente evoluir, pois, segundo salienta Paulo Amaral, tendo sido idealizado pela mesa administrativa da Misericórdia, a ideia encontrou um forte apoio junto da direção da instituição e, muito especialmente, junto do novo provedor, Eduardo Leite, que teve entre as suas premissas de campanha a abertura da Santa Casa à comunidade vimaranense.
Despedimo-nos dos alunos enquanto continua a aula, que se mostra não só um exercício de aprendizagem ou de recordação. Na generalidade dos casos, parece ser uma terapia, uma viagem aos tempos que já passaram ou uma segunda oportunidade para quem não pôde sentar-se nos bancos da escola. Nunca é tarde para aprender.
Voz das Misericórdias, Alexandre Rocha