“O bairro é labiríntico e com muitas entradas, nalgumas ruas só passamos de lado”, descreve Mónica Santos, ajudante de ação direta desde 2007, enquanto avançamos pela rua de casas inacabadas, onde a vegetação cresce livre num piso de terra. Acima das nossas cabeças, o emaranhado de cabos suspensos reflete a desordem da rede de abastecimento de eletricidade. Hoje temos encontro marcado com Maria Fernanda Manuel, que reside no bairro desde janeiro de 2023 e cumprirá em 2025 os cinco anos de residência em Portugal. Antes disso, não poderá regressar ao país de origem, onde deixou dez filhos e 30 netos.
A angolana de 72 anos acolhe-nos numa casa impecavelmente decorada e numerada à mão, com porta e telhado em chapa metálica, desculpando-se do cheiro a “pão [torrada] queimado”. Os vestígios de humidade nas paredes, embora ténues, denunciam o fraco isolamento e confluência do mar e pinhal. Mas o aquecedor e as mantas “resolvem tudo”.
Maria Fernanda recebe uma prestação mensal de 209 euros (valor atualizado para 237€ em 2024), no âmbito do Rendimento Social de Inserção, e um cabaz semanal de alimentos “com arroz, massa, enlatados, sabão, frutas, legumes e umas boas coisinhas” que lhe permitem fazer pratos de aconchego, como “arroz, feijão, peixe frito e uma salada”. Beija a mão e acrescenta “chuchu beleza”, enquanto solta uma gargalhada que nos deixa com água na boca.
Conhecer Celina Paulo, gestora do seu processo, deu novo alento aos dias de Fernanda. “Encontrei essa mãe maravilhosa que me atendeu (risos)”, reconhece. Do outro lado chega um “obrigado”. A técnica da Santa Casa ouve mais do que fala, mas esclarece toda as dúvidas que surgem no decorrer da conversa, como o acesso a consultas de medicina dentária, pedido de nacionalidade e candidatura ao programa Habit'Almada.
Neste momento, a atribuição de habitações, ao abrigo do programa gerido pela autarquia, está suspensa para revisão de regulamentos. Os realojamentos acontecem apenas em situações pontuais e urgentes, como sucedeu com uma das famílias que estava previsto o VM entrevistar, cuja habitação ardeu devido a um curto-circuito, e também com as cerca de 60 famílias que moravam sobre uma vala de drenagem, em risco de colapso.
O processo, que decorreu entre 2022 e 2023, foi atribulado e “esbarrou numa série de constrangimentos porque pressupôs que as pessoas fossem proactivas e cumprissem requisitos como comprovativos de rendimentos e fiadores”, adiantou a diretora coordenadora da Santa Casa, Sofia Valério. Outra crítica apontada foi a falta de envolvimento da associação de moradores, que “conhece bem a situação das pessoas” e, segundo o presidente Paulo Faísca, podia ter evitado que ficassem de fora “pessoas sem contrato de arrendamento [situação comum no Segundo Torrão], enquanto os senhorios, que não moram cá, tiveram direito a casa”.
Em relação ao futuro do bairro, a ministra da Habitação (então secretária de Estado), Marina Gonçalves, adiantou em setembro de 2022 que a solução definitiva de realojamento passava pela construção de 95 imóveis, no âmbito do ‘1º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação’. Um investimento com a duração prevista de três anos que, segundo o vereador da habitação em Almada, Filipe Pacheco, é a prova de que as “autarquias têm responsabilidades no desenvolvimento social e económico dos seus territórios” (revista ‘Almada’, julho 2023).
Mas “não basta construir casas para meter lá as pessoas”, assume o provedor da Santa Casa, Joaquim Barbosa. “É preciso fazer um trabalho contínuo de preparação das pessoas para viver numa casa decente, a preços baixíssimos ou a custo zero, até serem integradas. Só ouvimos falar de habitação a custos controlados, mas isso destina-se a pessoas com algum rendimento e no caso do Segundo Torrão as pessoas não têm emprego e têm de ser preparadas para viver numa casa. Este é um problema de dignidade humana e não podemos aceitar que no século XXI as pessoas vivam em barracas. É preciso desenvolver uma política social e de habitação no concelho, com realojamento acompanhado”. A expetativa, com a descentralização de competências (ver coluna), é que a Santa Casa passe a ter um papel mais ativo em realojamentos futuros.
ESPERAR E NÃO DESESPERAR
Maria Fernanda é uma das 2124 famílias (dados novembro 2023) acompanhada pela Misericórdia de Almada, que intervém nos territórios da Caparica, Trafaria, Sobreda, Almada, Pragal, Cova da Piedade e Cacilhas, com uma equipa de 16 técnicos e sete ajudantes de ação direta. Neste contexto tão diverso, a “Trafaria sempre foi o parente pobre de Almada”, adianta Joaquim Barbosa, servindo de asilo aos viajantes que eram obrigados a fazer quarentena e, mais tarde, a militares, presidiários e famílias que chegaram do ultramar, após o 25 de Abril.
Nesta confluência de rio, praia e pinhal, há uma população que teima em resistir às adversidades. Alice e Leonardo são disso exemplo. Vivem umas ruas acima de Fernanda, numa casa cinza. A jovem, com 21 anos, conclui a licenciatura em antropologia no final deste ano letivo e o rapaz, 18 anos, inicia em setembro uma nova etapa escolar. “Ele está virado para a informática. Está no 12º ano”, conta orgulhosa a mãe, Maria Caetana Silva, brasileira de 55 anos, que chegou ao Segundo Torrão em 2000, à boleia de um grande amor.
“Ele era pescador de amêijoa e a gente se conheceu no Brasil. Sempre vivi nessa casa, tivemos dois filhos maravilhosos e cuidámos dos pais dele. Entretanto, esse grande amor acabou no dia 17 de abril [2023], com um câncer de fígado. Foi um choque muito grande”, suspira, reconhecendo o apoio da Santa Casa, nos últimos meses de vida do marido. “Tive mais apoio delas [Celina e Mónica] que da família. Não vou morrer sem agradecer. A felicidade vem dessa gratidão”.
Apesar de todas estas memórias, Caetana não hesitaria em sair se lhe oferecessem uma casa fora do bairro. “Não é muito mau, é sossegado, mas se me dissessem que saía hoje eu ia. Os meus filhos foram criados aqui, mas pedem-me para sair. A Alice por vezes quer chegar mais tarde e tem medo. E só de pensar no Leonardo a estudar à noite fico nervosa”.
Relatos sobre a insegurança e criminalidade chegam-nos de vários moradores e da própria Santa Casa, que confirma a existência de tráfico e consumo de estupefacientes. Paulo Faísca, residente há 45 anos, conta que “o bairro está completamente mudado, antigamente as crianças brincavam à vontade na rua, havia maior convivência entre elas e hoje já não se pode deixar as portas abertas”. Pedro Santos, uma das crianças que brincou nas ruas do Segundo Torrão, lembra-se de “andar a correr por lá com amigos. Mas agora está pior, tem mais casas, mais pessoas e confusão. Eu já não conheço os caminhos que fazia e não me atrevo a andar muito por lá. Aquilo tomou outras proporções e a minha mãe já não se sente segura”.
Mas nem tudo é negativo. Em 2004, a face do bairro começou a mudar, com projetos de ocupação de tempos livres para as crianças (ESA – Experienciar, Sentir e Agir), o acompanhamento social das famílias e a gestão da creche, pré-escolar e ATL, no Centro Social da Trafaria (Santa Casa).
Hoje com 30 anos, Pedro Santos recorda a diversidade de experiências (passeios, oficinas criativas, apoio escolar), proporcionadas pela Santa Casa durante a infância e juventude, que lhe permitiu então abrir horizontes. Cresceu no Segundo Torrão, onde ainda vivem pais, tios, e primos, e hoje é o único licenciado [sociologia, ISCTE] na família, sendo motivo de orgulho para a mãe, que “sempre garantiu que tinha tudo o que precisava para ter sucesso na escola”, apesar de ter o 4º ano de escolaridade.
A transformação do território foi aprofundada com a assinatura do protocolo para acompanhamento das famílias beneficiárias de Rendimento Social de Inserção (2007) e ações de promoção de emprego, formação e prevenção da pobreza infantil, no âmbito do Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS) 3G (2016 a 2019) e 4G (2020-2023). “Fez-se um caminho positivo de capacitação das pessoas e da própria associação de moradores, que foi depois interrompido com o fim do CLDS, perdendo-se algum do investimento feito”, lamenta Fernanda Martins, do Centro Comunitário Pia II, resposta social da Misericórdia de Almada.
O presidente da associação é testemunha desta “transformação do bairro e do esforço da equipa da Santa Casa para resolver papelada, apoiar as crianças, alimentar as famílias, dar aulas de ética, administração e informática”. Com o incentivo destes aliados, Paulo Faísca assumiu as rédeas da associação e empenhou-se na resolução do “problema da luz, com a EDP e a Câmara Municipal, e no abastecimento de água, metendo uma tubagem nova”.
Enquanto percorremos o Segundo Torrão, apercebemo-nos desta relação de proximidade em que assenta toda a intervenção. “Já sabemos que passamos aqui uma manhã inteira, todos nos conhecem, mesmo os que não são acompanhados por nós”, partilha Celina Paulo, após ser interpelada por uma moradora. Contrariamente a meios citadinos, onde as pessoas “têm vergonha em receber os serviços”, aqui “querem-nos dentro de casa, precisam de apoio emocional, competências e afetos”. No regresso ao Centro Social da Trafaria, Celina, Mónica e Carla assumem que “todos estes números têm caras” que lhes ficam gravadas no coração. E inspiram-nas com a resiliência de quem espera a casa que lhes está prometida.
Combater a pobreza no concelho desde 1980
No século XX, a intervenção da Misericórdia de Almada centrou-se no hospital até ao 25 de Abril. Segundo o provedor Joaquim Barbosa, “a mudança de paradigma, orgânica e foco da intervenção deu-se nos anos 1980, com os projetos de luta contra a pobreza”. O Centro Comunitário Pia I (1987) e o projeto ‘Raízes para um Futuro de Sucesso’ (1990-1994) estão na génese desta intervenção e “quarenta anos depois a Misericórdia é marcante nesta área de apoio às famílias e pessoas”.
Quem são as pessoas do Segundo Torrão
Baixos níveis de escolaridade, famílias numerosas ou monoparentais, situações de desemprego ou emprego precário, devido a ausência de visto ou autorização de residência. Estes são alguns dos constrangimentos que os moradores do Segundo Torrão enfrentam, a par da sobrelotação, fragilidade das casas e captações ilegais de água e luz. Apesar das tentativas da autarquia em conter o crescimento do bairro, através do registo das casas, a equipa da Santa Casa observa novas construções e continua a receber inscrições para a creche.
PROXIMIDADE É A BASE DA INTERVENÇÃO
A equipa que assegura o acompanhamento social das famílias no Segundo Torrão explica ao VM que a confiança das famílias é conquistada através da escuta ativa e capacidade de interligar recursos na comunidade. Segundo Celina Paulo, “o nosso papel é acompanhar do nascimento à morte, por vezes várias gerações da mesma família, e ativar recursos na comunidade. Exige uma multiplicidade de atenções e um conhecimento do território e apoios disponíveis”.
A descentralização de competências para os municípios, que chegou à ação social em 2023, veio alterar este modelo de trabalho e os rácios de utente por técnico (250 famílias em ação social e 100 de RSI), comprometendo a proximidade que todos almejam. Isto porque, embora os serviços estejam fisicamente mais próximos, nalguns casos as técnicas “passaram de 70/90 processos para 200, gerando frustração nas equipas que têm dificuldade em estabelecer uma relação de proximidade com as famílias”, relata Fernanda Martins, do Centro Comunitário Pia II.
Apesar desta “fase de adaptação, mais crítica”, a coordenadora do serviço de atendimento e acompanhamento social da Santa Casa considera que esta alteração permite uma “perceção do território no seu todo, maior partilha com a equipa da autarquia e, possivelmente, um papel mais ativo em futuros processos de realojamento”.
Na avaliação que faz deste “momento de transição”, o provedor Joaquim Barbosa admite que as “necessidades podem ser mais do que as estimadas em termos de técnicos”, mas assume-se, ainda assim, um “adepto convicto da transferência de competências por permitir que agora todas as pessoas tenham a possibilidade de receber apoio”.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas