Martinho Barros, 63 anos, chega a casa depois da cinco. Veste o uniforme da Marcodiesel, oficina automóvel onde trabalha há 30 anos, o sorriso e a boina que só tira para dormir. A nova morada em Paio Pires surgiu como a promessa de um recomeço que há muito aguardava. Viveu perto de três décadas no Bairro da Jamaica e, em dezembro de 2018, saiu do lote 10 com outras 63 famílias, no âmbito de um realojamento pioneiro no concelho, que envolveu a Santa Casa da Misericórdia do Seixal, a Câmara Municipal e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), numa primeira fase. O município assumiu a dianteira do processo, a partir de 2019, ficando responsável pelo realojamento das restantes 170 famílias, concluído em fevereiro de 2024.

A nova habitação de Martinho em nada se assemelha à anterior. Ampla, luminosa, com três quartos e duas casas de banho. No terceiro andar de um prédio sem elevador, é certo, mas numa zona residencial bem servida de transportes públicos e outros serviços. Por isso, “dormir aqui no primeiro dia foi uma satisfação interior enorme. Só de imaginar tudo o que ia acontecer e uma nova integração. Eu já sabia estar na sociedade, mas vim a saber ainda mais por estar em contacto com pessoas que vivem num espaço diferente [da Jamaica], recordou.

A integração das famílias em apartamentos dispersos pela malha urbana do concelho, que distinguiu este realojamento desde o início, visava precisamente uma “maior inserção na sociedade de modo a evitar a criação de novos guetos”, adiantou o provedor da Santa Casa, Edison Dias, destacando ainda o desígnio de cumprir o direito à habitação, consagrado na Constituição da República Portuguesa. “Pelas condições criadas pela habitação, permite-se a fuga ao ciclo infernal da pobreza, que, de outra forma, é muito difícil de quebrar”, salientou.

Realidade a que se junta a fuga ao estigma, que pairava sobre os habitantes da Jamaica, conforme relatam os ex-moradores. “Esse preconceito existia. Se o currículo tivesse escrito Jamaica na morada, perdia o emprego”, admite Martinho, contrariando a imagem dos “malfeitores” associada aos moradores de Vale de Chícharos. “As pessoas não se integraram muito facilmente e havia alguma indisciplina naquela sociedade, mas nem todos eram a mesma coisa. Vinha muita gente de fora fazer negócio ali para não serem vistos e nós ficávamos com má fama. Mas não significa que não houvesse também delinquentes, que eram aliciados por essa vida fácil”, reconhece o santomense, com base numa vivência de quase 30 anos naquele lugar “maldito”.

Martinho Barros instalou-se definitivamente em Vale de Chícharos em outubro de 1990 e durante quatro anos não tirou férias para juntar dinheiro e trazer a família para Portugal. “Quando fui para a Jamaica só havia estrutura e pilar, do rés-do-chão ao décimo andar, não havia tijolo. Nós é que fizemos tudo, pusemos cimento, tijolo, parede”. Sem pudor, resgata estas memórias que “davam para escrever um livro” e lembra que, nos primeiros tempos, “dormia num espaço aberto, com uma parede em frente, deitava-me num monte de areia, abria uma vala, punha um pano e cobria-me. Por isso, tenho muito orgulho do que consegui e de quem sou hoje”.

Numa espécie de vida dupla, Martinho e os vizinhos trabalhavam de dia e erguiam paredes de noite para transformar a “casa do inferno num palácio”, mesmo sem luz para os guiar nas escadas. “Porque a Jamaica parecia um esqueleto por fora, mas era uma categoria dentro das quatro paredes”, recorda. Exceto quando caía água do andar de cima e era preciso cobrir a cama com um saco de plástico. Mas para Leida, a filha mais nova, esse é um detalhe sem importância nas memórias de uma “infância feliz, sem saber o que eram problemas”.

Em 2004, Andreza e os seis filhos do casal chegaram para morar na “casa pequena e humilde”, sabendo, desde o início, que era um lugar temporário. “Tínhamos consciência que estávamos a ocupar um espaço que não era nosso e que podíamos ter de sair”, admitem com serenidade.

Olhando para trás, reconhecem que a mudança foi para melhor, mas sentem falta da vizinhança. “Era uma pequena África dentro de Portugal, a gente levanta de manhã e dá bom dia aos vizinhos, os filhos saem para brincar na rua. Agora quase não vemos ninguém”, desabafam. Nas primeiras semanas, Martinho ligava o rádio para calar a solidão: “faltava a família alargada, os amigos santomenses, cabo-verdianos, guineenses e angolanos”.

Deste burburinho de vozes resta agora o silêncio, com que se confrontam Ana Cláudia Dias, responsável do projeto “Bem-Habitar”, com gestão da Misericórdia do Seixal, e Luís Serra, psicólogo que acompanha as visitas às famílias, no dia em que vemos o que resta da Jamaica. “O som faz muita diferença, havia muita vida aqui”, comenta o psicólogo, recordando os desabafos que escuta no contacto com os ex-moradores. “Nalguns casos, dizem sentir falta da vida de bairro e proximidade entre todos. Havia uma relação de comunidade muito próxima. Mas mesmo assim preferem a casa nova”, relata. A técnica que o acompanha nestas visitas acrescenta que “no bairro acontecia muita coisa, havia drogas e criminalidade. Muitas pessoas estavam desejosas de sair, tinham receio pelos filhos e agora estão mais descansadas”.

Outra grande mudança na vida destas famílias foi adaptar o orçamento às novas obrigações. Durante anos não pagaram rendas e abasteceram-se com puxadas da rede elétrica, ainda visíveis no emaranhado de cabos suspensos na planície inabitada. Em pleno inverno de 2019, Martinho recorda o choque sentido quando recebeu a primeira fatura de eletricidade: “Cento e poucos euros, o que é isto? E quando veio a renda? 352 euros, Ipa!”.

O valor estipulado fora calculado em função dos rendimentos dos arrendatários e outras variáveis definidas pelo Regime de Arrendamento Apoiado (ver caixa). E exigiu maior contenção nas despesas. “A minha esposa é uma boa gestora. E eu também atinei muito, na Jamaica não pagava água e luz e dava para uma cervejinha com amigos. Agora compro e meto na despensa. O estilo de vida é outro”, admite o santomense, que agora tem sob sua responsabilidade uma das filhas, com 28 anos, e dois netos, com três anos e seis meses.

Todas estas alterações no agregado familiar são comunicadas ao senhorio, neste caso a Santa Casa, responsável pela gestão dos contratos de arrendamento. E refletem-se no cálculo das rendas, que serão em breve ajustadas e comunicadas às famílias, adianta Ana Cláudia Dias.

A técnica da Santa Casa é responsável por acompanhar as 64 famílias realojadas, na sua relação com a vizinhança e no cumprimento dos seus direitos e deveres como inquilinos, assegurando a realização de visitas domiciliárias com o psicólogo, quando surgem solicitações. “Assim sabem que não estão sozinhos e sentem que há alguém do outro lado que os ouve”.

A maioria reside em apartamentos de tipologia T2 e T3, mas há também T1 e T4, dispersos pelo concelho. Tratam-se de famílias alargadas, com primos, tios, netos e avós, e de famílias monoparentais ou nucleares, naturais, em 85% dos casos, de São Tomé e Príncipe, num total de 189 pessoas, que residiam no “denominado lote 10”, o mais populoso do Bairro da Jamaica.

Apesar de situações pontuais, relacionadas com as canalizações e estrutura dos imóveis, a maioria “agradece a oportunidade que lhes foi dada e refere que ajudou a retirar o preconceito de cima delas e a sentirem-se mais seguras na relação com a comunidade, permitindo centrarem-se nos seus objetivos pessoais e da família”, revela o psicólogo, adiantando que, na generalidade dos casos, as relações de vizinhança são pacíficas. Hoje, a Quinta de Vale de Chícharos é uma ruína a céu aberto. Restam os graffitis com rostos imaginários de quem lá morou, os despojos dos últimos prédios e uma máquina demolidora que engole as entranhas dos moribundos que continuam de pé.

A participação direta num realojamento é uma estreia para a Santa Casa do Seixal, mas tem como enquadramento um histórico de 20 anos de intervenção com famílias vulneráveis do concelho, nos bairros de Santa Marta do Pinhal e Cucena. Segundo o provedor, “aquilo que caracteriza a Misericórdia do Seixal é a variabilidade de respostas em função das necessidades. Neste caso, a Câmara Municipal (caixa) viu na Misericórdia um parceiro já com alguma experiência nesta área para dar cumprimento ao direito à habitação. Mas a ideia é não ficar por aqui e promover também o realojamento destas famílias [Santa Marta e Cucena]”, referiu, adiantando estar ainda por definir os moldes e envolvimento da Santa Casa neste processo.

Com o foco nas pessoas, a Santa Casa devolve dignidade e consagra um direito de cidadania fundamental. Assim, da próxima vez que lhes perguntarem a morada, a resposta deixa de ser: “moro naquela rua onde ninguém entra. E quebra-se o ciclo infernal da pobreza”.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas

Fotografias: Marta Poppe

 

Acordo tripartido assinado em 2017

Na génese do projeto ‘Bem-Habitar’ está um acordo assinado, em dezembro de 2017, entre a Santa Casa do Seixal, a Câmara Municipal e o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), no âmbito do PROHABITA - Programa de Financiamento para Acesso à Habitação. No protocolo assinado, as entidades comprometem-se a atribuir habitações 64 habitações a um número igual de “agregados familiares residentes em situação de grave carência habitacional no Lote 10 do Loteamento Quinta Vale de Chícharos”, identificadas pelo município.

Trabalho que prevê cuidar das famílias

Segundo o provedor da Misericórdia do Seixal, o valor de aquisição das 64 habitações foi de cerca de cinco milhões de euros, sendo que 50% foi concedido a fundo perdido pelo IHRU e o valor remanescente assegurado pela autarquia. No acordo, está também prevista uma compensação do município, em prestações anuais, no valor de cerca de 50 mil euros, para a “gestão do processo, manutenção dos apartamentos e acompanhamento das famílias na sua inserção social e habitacional”, detalhou Edison Dias.

64

Martinho e Andreza Barros são uma das 64 famílias a quem foi atribuída habitação, no âmbito de um realojamento, iniciado em 2018, que envolveu numa primeira fase a Santa Casa, Câmara Municipal e IHRU. O município assumiu a gestão do processo, a partir dessa data, concluindo em fevereiro este ano o realojamento dos últimos agregados, que envolveu um total de 234 famílias e 800 pessoas. Em declarações à Renascença, o presidente da autarquia, Paulo Silva, fala de uma integração plena a partir de um “modelo inovador que foi o de não criarmos novos bairros sociais e dispersarmos essas famílias pela malha urbana do concelho”.

350

O direito a uma nova casa é acompanhado de obrigações, como o pagamento de despesas de água, luz e rendas, calculadas em função do rendimento dos arrendatários e outras variáveis (valor de aquisição da habitação, número de dependentes, etc.), sendo que a taxa de esforço não pode ser superior a 23%, de acordo com o Regime de Arrendamento Apoiado. Os contratos de arrendamento têm a duração de dez anos (renovável) e os valores das rendas rondam os cinco e os 350 euros, sujeitos a atualizações em função desse enquadramento legal.