Maria dos Anjos nasceu em 1933, numa pequena aldeia entre Viseu e São Pedro do Sul. A família tinha mais filhos (nove) que recursos e por isso deixou a escola muito nova para trabalhar. “Passei para a terceira classe, sabia muito de contas. Mas sempre fui ruim” (risos).
Na juventude, trabalhou em moinhos, no Rio Vouga, onde se moíam cereais, milho, centeio e cevada, e nos tempos livres aproveitava para dançar nos bailaricos e tomar banho no rio. “Era uma Maria maluca, tenho saudades de ser criança e menina”, recorda.
Com 21 anos, decidiu atravessar o Atlântico para “governar a vida” nos EUA, terra de promessa e fortuna, onde a esperavam alguns familiares. “Fui para casa de um médico tomar conta de duas crianças, ainda hoje guardo a fotografia deles”. Na memória ficou gravada a partida da terra natal e a despedida dos pais, que não voltou a ver. “A minha mãe chorou tanto, disse que nunca mais me via e a verdade é que morreu antes de a voltar a ver”.
Rumou, mais tarde, ao Brasil, onde conheceu o futuro marido, em casa de “patrões portugueses”. “A minha patroa disse-me, casa com o Zé, depois a gente morre e não tens ninguém de família aqui”. Na altura, era governanta, cozinheira e tomava conta de crianças.
A união foi consumada e as filhas nasceram nesse “país bonito” repleto de compatriotas. Vivia, então, no Rio de Janeiro e aproveitava a proximidade da Praia Vermelha para dar uns mergulhos de mar nas primeiras horas do dia. Regressava depois a casa num “bondinho” (elétrico).
Desses tempos, recorda ainda os banquetes faustosos que preparava, com enormes travessas de feijoada, vatapá e rosbife. “Servíamos tantos pratos, vinham médicos de fora, muita gente”.
Regressou ao país de origem, em 1980, e construiu uma casa de raiz na Trafaria, que foi crescendo com a família. Hoje, cada uma tem direito a um andar e o espaço exterior, com horta e jardim, é partilhado por todas, mãe, filhas e neta. A proximidade tem vantagens por isso nenhuma sai de casa sem garantir que a matriarca toma a medicação do dia.
As restantes horas do dia são passadas na companhia das “velhotas do centro de dia”, da Misericórdia de Almada, as amigas a quem “dá carinho e ajuda sempre que preciso”, depois de uma ausência prolongada, na sequência do encerramento dos centros de dia, em março.
Na semana em que falamos, no início de novembro, nota-se um desalento na voz, que não existia no nosso último encontro. Tem saudades das “Avós do Mar”, com quem partilha tachos e histórias de vida, ao abrigo da parceria com a Varina, e dos turistas que as visitavam para aprender receitas e tradições locais. Além das rotinas, que mudaram, queixa-se do corpo que não tem a mesma vivacidade de outrora. “A saúde está ruim e os ossos deformam com a atrite e osteoporose. Chorar não choro, mas fico amargurada porque estou à espera da morte”.
Aos 87 anos, os problemas de ossos tiram-lhe a vontade de cuidar da horta, mas não a impedem de fazer diariamente uma caminhada de 30 minutos até ao Centro Social da Trafaria.
Desfiando memórias, recordamos momentos felizes, vividos além-fronteiras, e rimos das rugas cravadas no rosto, que a neta gosta de registar em fotografia. Maria dos Anjos continua a espalhar o seu charme pelas ruas da vila piscatória e a prova está na exposição recentemente inaugurada no Espaço Cultural da Junta (Oficina da Biblioteca) na Trafaria, intitulada “Vó Maria - 87 Rugas”, da autoria de Margarida Martins. Mesmo aos 87, a nossa estrela continua a brilhar.
Da aldeia
em Viseu
para o Brasil
Maria dos Anjos nasceu em 1933, numa pequena aldeia entre Viseu e São Pedro do Sul e começou a trabalhar muito nova para ajudar a sustentar a família, com nove filhos. Na juventude, decidiu atravessar o Atlântico para procurar oportunidades de emprego mais promissoras nos EUA e acabou, mais tarde, a viver no Brasil, onde casou e teve duas filhas. Regressa ao país de origem, em 1980, e estabelece-se na Trafaria, onde mora até aos dias de hoje.
Avós do Mar
são estrelas
do centro
Maria dos Anjos é uma das “Avós do Mar”, no âmbito do projeto de intervenção comunitária que une a Misericórdia de Almada e a empresa de turismo social Varina. Segundo a diretora do Centro Social da Trafaria, onde frequenta o centro de dia, Maria dos Anjos é uma das “estrelas da companhia”, sendo frequentemente solicitada para entrevistas e outras participações. No âmbito desta iniciativa, participa em atividades de culinária dirigidas a turistas, que procuram uma experiência autêntica e de proximidade com a comunidade.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas