É da janela do primeiro andar que Olga Duarte, 76 anos, recebe Ana Rebola, educadora de infância que, por estes dias, integra a equipa de voluntários da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, que está a distribuir refeições a cerca de 30 pessoas que, pela idade ou doença crónica, têm de estar em isolamento social. Entretanto, já Patrícia, a jovem com quem partilha a casa e que a trata por mãe, abriu a porta para recolher o saco. Mesmo que breve, o encontro revela-se mais do que uma entrega de comida.
Olga, que desceu ao andar de baixo e se juntou à conversa, aproveita o momento para desabafar. Fala das saudades que tem dos netos e dos passeios que davam no parque da cidade, de jogar à bola com eles, de ir ao café do bairro “tomar a bica” e de como isso ajudava a tranquilizar Patrícia, que sofre de epilepsia e esquizofrenia. “Não tem ido à instituição. É uma companhia. Só tenho pena de não podermos dar as nossas passeatas. Ficava mais calma”, diz, contando que Patrícia é uma das cinco crianças de quem foi família de acolhimento e que acabou por ficar consigo.
Agora confinadas às paredes de casa, as duas fazem o que podem para passar o tempo. Naquela manhã, Olga entreve-se a bordar, enquanto Patrícia fazia algumas fichas de Português. Outras vezes assistem televisão ou conversam com os vizinhos à janela. A jovem tem-se também disponibilizado para ir levar o lixo de alguns moradores da rua ao contentor.
No dia anterior, receberam a visita da filha de Olga, que levou medicamentos e repetiu os conselhos para se manterem em casa. “Há dias que não a via. Pediu-me para não sair”, confidencia a idosa, assumindo que já começa a ressentir-se da “tristeza” que lhe provoca o não poder ir à rua. “Dentro do possível, estou bem. Só me apetece sair. Tenho tanta vontade de ir ao Marachão [zona ribeirinha de Leiria] jogar à bola com os meus netos”, desabafa.
Ana Rebola, que já conhecia as duas – a creche da Misericórdia fica no mesmo bairro - ouve as confidências e procura palavras de conforto, o que, reconhece, nem sempre é fácil. “Temos de ter paciência. Haveremos de voltar à nossa rotina”, diz enquanto se despede até ao dia seguinte. Há mais utentes à espera da visita.
Grande necessidade de falar
Diogo Batalha, administrador da Misericórdia, explica que o serviço que prestam resultou de um pedido feito pela Câmara Municipal para prestar apoio a pessoas que, pela idade ou pelas patologias de que sofrem, têm de estar em confinamento. Começou com dez utentes, já vai em cerca de 30 e manter-se-á “até que seja necessário”
O serviço é assegurado, durante a semana, por três funcionárias da creche (a educadora Ana Rebola e duas auxiliares) e, ao fim-de-semana, por igual número de voluntários. As equipas - sempre devidamente protegidas com máscara, viseira, bata e luvas - são completadas por Nuno Ferreira que, por estes dias, trocou a função de coordenação da Academia Movimento Ativo (AMA) da Misericórdia para assumir a gestão desta resposta e do apoio solidário que a instituição também está a assegurar, através de uma linha telefónica.
É Nuno que atende as chamadas. Do outro lado surgem, sobretudo, pedidos para idas ao supermercado ou à farmácia, para comprar gás ou carregar o telemóvel. Não raras vezes, o pedido é apenas o pretexto para conversar. “Há uma grande necessidade de falar”, assume Nuno Ferreira, que tem também recebido chamadas de utentes da AMA a perguntar quando é que retomam as atividades ou com outro tipo de pedidos, como aquele que recebeu na manhã em que o Voz das Misericórdias acompanhou a equipa. Uma aluna da academia, que está a tomar conta dos pais “acamados”, pede ajuda porque precisa de uma cama elevatória. “Vamos tentar encontrar uma solução”, promete-lhe Nuno, enquanto as três colegas de equipa vão preparando os sacos que irão distribuir nessa manhã. Levam sopa, prato, pão e fruta para “todo o dia”.
“A comida é importante, mas a companhia também. Recebem-nos sempre com carinho. Agradecem-nos imenso. Até nos chamam anjos”, conta Ana Rebola, sublinhando que, por vezes, a equipa é o único contacto humano que aquelas pessoas têm. “Quando tocámos à campainha, muitos recebem-nos a chorar. Ficamos sem saber o que fazer”, admite Nuno Ferreira. O técnico frisa que, em muitos casos, os beneficiários desse apoio ainda têm autonomia e estavam habituados a frequentar o café, ir à mercearia ou à farmácia e agora vêem-se confinados às suas habitações.
É esse o caso dos pais de Teresa Jordão, de 86 e 91 anos, que habitualmente iam almoçar à cidade e davam o seu passeio diário. Agora, estão fechados há semanas no apartamento, recebendo apenas a visita dos voluntários e da filha, para quem este serviço da Misericórdia é “uma bênção”. Naquele dia, a equipa deixa também o contacto da linha de apoio solidário. “Se precisarem de alguma coisa, liguem”, reforça Ana Rebola, que, de regresso à rota do dia, vai partilhando a satisfação por ajudar num momento como este: poder dar um pouco de si em prol dos outros, como tantos estão a fazer nestes tempos de pandemia. “É essa a missão da Misericórdia”, remata o administrador Diogo Batalha.
Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva