1. Desde o início do primeiro caso de Covid-19, os mais velhos são os mais atingidos por esta doença e a sua taxa de letalidade é maior, como era previsível. Pena que, para os casos ocorridos em lares e outras instituições de acolhimento, as autoridades lhes tenham reagido em vez de os tentarem prevenir logo de início. Não é preciso ser um expert para se concluir que, sem acções planeadas de precaução, um dos mais graves rastilhos epidémicos se concentraria naqueles estabelecimentos.
De um modo predominantemente subliminar ou implícito e pelo mundo fora, há crescentes afloramentos eticamente discriminatórios da “bondade” social de estratificação geracional, incidindo sobre os mais velhos. Tomam a forma de juízos sobre a escolha entre quem já viveu muito e quem ainda tem muito para viver, de constatações sibilinas de que “já não vale tanto a pena”, de apreciações do tipo “foi assim com o vírus, seria assim com outra qualquer doença”. Intui-se que, no espírito de muita gente, há um certo “alívio social” com a notícia - sob a forma estatística - de que a larga maioria dos mortos está concentrada nos velhos. Tudo embrulhado em lindas palavras e eufemismos generosos que escondem um raciocínio generalizado de opção (ou alheamento) utilitarista. Sabemos - tal como ordena a lei natural da vida - que quem nasce primeiro deve, em regra, morrer primeiro. O que não podemos aceitar é que se acelere, de um modo injusto e discriminatório, esta forma de eutanásia social, geracional e terminal.
Os velhos não podem esconder os sinais exteriores da sua idade. Mas, durante décadas, foi um fartar de correcção política para que o velho não o parecesse. Assim nasceu o dito conceito europeizado de “envelhecimento activo”, que é tão-só obrigatório proclamar em qualquer discursata política. Assim germinou uma escala de vocábulos para evitar o estigma semântico de velho. Outrora, o velho poderia ser chamado de ancião, como expressão de respeitabilidade diante da sabedoria que a vida dá. Derrubada a ancianidade, conceito considerado retrógrado, tornou-se generalizada a nova raiz lexical da velhice - a idade - e, assim, o termo mais genuíno de velho se transformou na forma anódina e quase abstracta do idoso, do que tem idade. Os eufemismos continuaram e passou-se de idoso para sénior, sem que se aproveitasse a riqueza dessa mesma senioridade na sociedade contemporânea, pois que, cada vez mais, se cultiva o novo, o recente, o renovado, e se distrata o velho, o antigo, o longevo. Mas eis que, perante este repto dramático da pandemia, o sénior voltou a ser idoso e o idoso regressou a velho. Na óptica dominante de se ver a velhice como um peso e um sarilho, ser velho tornou-se mais obviamente inútil, embaraçador, descartável. Uma espécie de posta-restante da sociedade. Velho não dá retorno, só dá prejuízo, pressente-se no interior da hodierna sociedade. A respeitabilidade dos “cabelos grisalhos” tende a ser desconsiderada, ainda que se fale da “idade prateada”. Eis que, por fim, esta pandemia veio reportar à luz do dia a denominação generalizada de utente (que palavra tão feia!). É assim que nos é noticiada a morte. Os velhos estão a morrer mais como utentes do que como pessoas. Utente do lar, utente da casa de repouso, utente da unidade de cuidados continuados, utente de hospitais. E tudo vemos com a distância de uma tela que se encarrega de nos tornar insensíveis ou nos anestesiar, de tão mecânica e repetidamente tudo ser noticiado ou explorado sem rebuço.
No começo desta insondável crise, o vírus escolheu os velhos como primeiras vítimas e as autoridades conformaram-se com este diktat viral. Vítimas literalmente falando, mas também vítimas de uma via dolorosa de andar entre ali e acolá à espera da sua vez, vítimas pelo agravamento do “eclipse” dos avós proibidos de se aproximarem dos netos numa forma dramática de confinamento geracional, que vai além do geográfico, quem sabe até se vítimas de práticas de imunidade de grupo que os afastarão ainda mais do mundo. Para muitas pessoas velhas o confinamento já era uma realidade e agora suportam o confinamento do próprio confinamento. Mas, enquanto a maioria das pessoas estão confinadas para não adoecer, velhos em instituições de acolhimento estão a morrer por estarem confinados. Cada vez mais num forçado pacto com a solidão.
Se bem reparamos, diante da doença, do isolamento, da pobreza, da supressão de laços familiares e de proximidade, da morte, hoje tudo se quantifica em euros, percentagens e estatísticas indolores e assépticas. Não se ouvem os gritos dos velhos porque não são sensoriais, antes estão entranhados nas suas almas. Frequentemente, se diz que não há dinheiro. Dinheiro que, todavia, tem havido para perdoar dívidas de milhões de caloteiros encartados, de contumazes devedores, de bancos transformados em banquetas fraudulentas, de pequenos ou grandes caprichos políticos ou clientelares, etc. Também no tempo da anterior crise, havia que escolher as vítimas pagadoras, e logo à cabeça estiveram os velhos, sempre à mão de semear e sem o poder da rua, para garantir o equilíbrio do que não desequilibraram. É necessário travar uma certa tendência para vivermos entre um certo Portugal dos pequeninos (não necessariamente na idade) e o Portugal dos velhinhos.
2. Neste tempo de angústia e de medo, as Misericórdias têm desempenhado um papel importante, apesar das dificuldades materiais que a maior parte delas está sofrendo. É um tempo muito difícil, mas também a ocasião para mostrar a todo o Portugal que sabem exprimir o verdadeiro sentido da solidariedade. Solidariedade como um valor e não como uma simples técnica. Solidariedade fundamentada em princípios inalienáveis de dignidade da pessoa humana. Solidariedade como referência de exemplaridade geracional. Solidariedade como uma forma plena de realizar justiça com alma e coração.
E o Estado tem de contribuir também para que mais e melhor se exprima o princípio da subsidiariedade social, tão bem consagrado na Doutrina Social cristã. Ou seja, a solidariedade é mais profunda e genuína se concretizada através de uma harmoniosa e responsável hierarquia e subordinação de valores: o ser antes do ter, a ordem das coisas subordinada à ordem das pessoas, a convivência antes do isolamento, a família antes do Estado.
Este tempo dramático também pode e deve ser aproveitado pelas Misericórdias para se afirmarem plenamente perante os poderes públicos e os cidadãos como espaços exemplares de respeito incondicional pela vida, de compreensão e da equidade entre diferentes idades, de melhor combinação entre recursos monetários e não monetários (tempo, competência, saberes, partilha, gratidão, lealdade, gratuitidade...).
Tudo isto, numa óptica vincadamente preventiva e de reinserção social e comunitária, integrando e não compartimentando soluções, reforçando a qualidade da resposta e não apenas a quantidade, utilizando estruturas leves, ágeis e flexíveis e não concentradas e burocratizadas, através de uma adequada simbiose entre voluntariado, generosidade e profissionalismo.
Certamente, que tudo isto exigirá um posicionamento e uma atitude de respeito e de não desconfiança do Estado, às vezes demasiado cioso de ditar, através de normas e orientações, o seu poder autoritário e burocrático e desestimular, não raro, atitudes boas, generosas e socialmente reprodutivas.
Para quem secundariza ideologicamente o trabalho das Misericórdias ou o releva apenas como “moda” ou como uma formal obrigação política, basta imaginar-se o que seria o caos social no nosso país sem a sua existência, o seu passado e a sua vocação intemporal.
Como disse o Papa Francisco, “estamos todos neste barco. Ninguém se salva sozinho.”
Por opção, este texto não segue o chamado Acordo Ortográfico