O provedor da Misericórdia da Pampilhosa da Serra, António Sérgio Martins, escreveu um artigo de opinião publicado nas edições de julho/agosto e setembro do jornal “Voz das Misericórdias” que pode ler na íntegra aqui.

António Sérgio Martins
Provedor da Misericórdia da Pampilhosa da Serra

“Depois de casa arrombada, trancas à porta” é uma expressão tradicional portuguesa que representa as consequências da forma descuidada, desatenta e até insensível, com que uma pessoa, ou entidade, lida com a gestão dos seus bens e do seu património.

Vem isto a propósito da discussão que agora se inicia sobre o papel e o modelo de gestão que se deverá adotar no âmbito das instituições anexas, ou como os estatutos da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) melhor definem – equipamentos anexos (n.º 1 do artigo 51º).

Discussão esta que peca por tardia, mas que, desde já, se aplaude e saúda, embora deva ser dito que esta mesma discussão resultou da apreensão com que as Misericórdias reagiram à pretensa constituição da fundação das Misericórdias, do que propriamente a um debate lançado por quem teria essa responsabilidade.

Por isso foi com surpresa, mas idêntico agrado, que tomei conhecimento da imensa preocupação manifestada pelo meu colega da Misericórdia do Porto em abordar esta temática, embora o seu discurso mereça da minha parte, com humildade e sem qualquer pretensiosismo, algumas correções.

Correções estas que se impõem, ou não fossem os mais desprevenidos ficar com a ideia de que a assembleia geral realizada no pretérito dia 27 de junho não terá acontecido, pelo menos assim pensarão os que nela participaram, pois quem lê a edição de junho do jornal Voz das Misericórdias ficará com uma ideia distorcida do que realmente se passou nessa mesma assembleia.

Por princípio, não sou contra a adoção das fundações como modelo de gestão para as instituições anexas, desde que este acautele o património e os ativos da nossa UMP e que seja precedido de um amplo debate, claro e transparente, sobre as vantagens e desvantagens, desta ou de outra solução para as anexas, que devem, em última análise, contribuir para a missão das Misericórdias de Portugal.

Contudo, esse debate deverá ter um ponto de partida claro, e este, neste caso, é o papel essencial que as instituições anexas representam na estratégia da UMP, pelo que é fundamental reavivar alguns aspetos que devem estar presentes a montante dessa discussão e que passo a enumerar:

1. As instituições anexas estão presentes na estratégia da UMP há mais de 35 anos, sendo essenciais à afirmação desta entidade e ao reconhecimento do papel das Santas Casas no contexto da intervenção social nacional e internacional.

2. As instituições anexas representam a grande parte dos mais de 25 milhões de ativos, bem como do significativo património de que a UMP dispõe, e que sendo titulado por esta, cabe apenas à sua Assembleia Geral, composta por todas as Misericórdias, dele dispor como bem entender, mas na qual tanto vale uma Santa Casa de significativa dimensão como uma de menor dimensão, pois cada uma delas tem direito a um voto.

3. As instituições anexas têm permitido à UMP adquirir conhecimento e desenvolver propostas junto da tutela sobre modelos de intervenção, para além de contribuírem, decisivamente, para a sustentabilidade da mesma, e disto percebem e sabem todos os Srs. Provedores.

4. Os estatutos da UMP, revistos em 2014, foram adequados à constituição de uma estrutura vocacionadas para a gestão das instituições anexas, designadamente através de um Conselho Coordenador e de Administradores Delegados (art. n.º 52 e 53 dos estatutos da UMP), para que a representação e defesa das Misericórdias não fosse condicionada.

5. Nunca em momento algum poderá ser invocado o condicionamento do Secretariado Nacional nas negociações com a tutela por causa das instituições anexas, desde logo, porque à mesa das negociações estão, para além das Misericórdias, as Mutualidades, as IPSS e as Cooperativas, e depois, porque só é condicionado quem se deixa condicionar, ou tiver “telhados de vidro”.

Dito isto, importa realçar que a Assembleia Geral do passado dia 27 de junho apenas foi o ponto de partida para a discussão da necessidade, ou não, da constituição da fundação das Misericórdias.

Mas esta discussão resultou unicamente da posição adotada pela grande maioria dos Provedores presentes nessa reunião magna, e não por outra coisa qualquer.

Com efeito, quando agora surgem os arautos da defesa dessa discussão, importa destacar que esses mesmos arautos foram responsáveis pela pretensa votação de um ponto (n.º 4) da convocatória que se destinava a aprovar, ou não, a constituição da dita fundação.

Aliás, uma fundação que não estando ainda aprovada pelas Misericórdias, tinha já uma comissão instaladora, da qual fazia parte o Sr. Provedor António Tavares – um dos que agora pede “um debate imperativo” sobre o futuro das Instituições anexas.

Uma fundação que, em 17 de fevereiro de 2020, era já anunciada no suplemento económico do Jornal Expresso com o título - “União das Misericórdias cria fundação para gerir património”, mesmo antes de aprovada pelos Provedores de Portugal.

Por tudo isto, a votação pretendida, não só pela forma como estava redigido o ponto em causa, tornava-se imperativa e, caso fosse favorável, era uma carta-branca ao Secretariado Nacional, mas sem que se conhecessem coisas tão básicas como os estatutos da putativa fundação.

Na realidade, andou bem quem pediu a retirada desse ponto da ordem de trabalhos, mas andou mal quem o levou quase no limite à sua votação, culminando antes na aprovação da constituição de um grupo de trabalho. O que era desnecessário, pois é competência do Secretariado Nacional através da aliena j do artigo 31º dos Estatutos da UMP, criar grupos de trabalho.

Contudo, esta decisão foi apenas uma forma de aplacar a Assembleia e de se ensaiar uma nova narrativa sobre esta estória da fundação.

Por outro lado, se houve retirada de uma moção para votação, tal não sucedeu porque havia apenas 35% de Misericórdias representadas, antes pelo contrário, a retirada da dita moção ficou a dever-se, unicamente, ao facto de que a grande maioria dos provedores presentes estavam contra a votação do ponto em causa da ordem de trabalhos, desde logo pelo desconhecimento das matérias em questão.

Estou convicto de que, caso o sentimento dos provedores presentes fosse em sentido contrário, essa moção nunca teria sido retirada.

Esta é a mais elementar verdade!

Como já atrás referi, por princípio, não estou contra a constituição da fundação das Misericórdias, mas desde que esta acautele, através dos seus estatutos, o controle, mesmo que indireto, dos ativos e do património que possa vir a ser transferido da UMP para a mesma.

Quero com isto dizer que o presidente do Secretariado Nacional da UMP tem que ser, por inerência, o presidente do Conselho de Administração da fundação.

O tesoureiro da UMP tem que ser, por inerência, o tesoureiro do Conselho de Administração da fundação, bem como a maioria dos membros do Conselho de Administração desta deverão ser, por inerência, membros do Secretariado Nacional.

Contudo, mais do que os nomes (seja Manuel, António ou Carlos), deverão ser os cargos a pontificar, para que, sempre que as Misericórdias elegerem os seus representantes na UMP, também, indiretamente, estejam a eleger os seus representantes na dita fundação.

De igual modo, o Conselho Geral, ou Conselho de Curadores, como no passado era conhecido, deverá ter, por inerência, os presidentes das Uniões Regionais e Secretariados Regionais, mudando sempre que estes mudem no decurso dos atos eleitorais na UMP.

Claro está que neste órgão poderão estar personalidades de reconhecido mérito e valor no trabalho desenvolvido ao longo de anos junto da causa das Misericórdias, mas tal não invalida o que atrás enunciei, antes pelo contrário, reforça-o.

E não digam que estamos perante uma “barriga de aluguer”. Estamos simplesmente a defender as Misericórdias de Portugal e se mais nada houver para dizer sobre esta matéria, o que não é o caso, repare-se nos exemplos de algumas Misericórdias que têm as suas fundações.

Na verdade, nessas manda o provedor e a maioria dos membros do Conselho de Administração são membros das Mesa Administrativas.

Então se nessas Misericórdias o modelo é esse, porque não poderá ser na nossa UMP?

De igual modo discordo daqueles que vêm agora dizer que a epidemia do Covid-19 representa um risco para as Instituições Anexas e que, por essa via, destrói a reputação da UMP.

Então esse risco não é partilhado por todas as Misericórdias de Portugal e, caso exista ou venha a existir, um caso nas nossas Instituições Anexas, não estarão os provedores de Portugal unidos na defesa das mesmas? Pois se é isto que esperamos da UMP, também será isto que a UMP poderá esperar de nós todos.

Neste contexto não entendo, pois, qual a vantagem da fundação das Misericórdias na defesa do bom nome das Santas Casas se nela existir um caso de Covid-19? Então a dita fundação não ostentará o nome Misericórdias e, através deste, não afetará todas as Misericórdias de Portugal?

Com efeito, a UMP precisa de se ajustar e inovar perante “Os ventos da História”, como bem diz o nosso querido amigo diretor do Jornal Voz das Misericórdias, e eu sei, tal como muitos provedores de Portugal sabem, que a mudança terá que começar pela nossa União.

Mas essa mudança nunca poderá ser feita à custa do sacrifício dos que nos antecederam, e muito menos colocando em causa os princípios do movimento das Misericórdias Portuguesas.

Ora, como bem diz Paulo Moreira: “As Misericórdias, ao longo dos seus mais de 500 anos de existência, sempre souberam acompanhar os ventos da história”, mas, acrescente-se, porque nunca abdicaram dos seus valores e essa é a verdadeira razão para subsistirem.

É por isso que eu não quero sofrer com a expressão popular “casa arrombada, trancas à porta”. Eu quero, e muitos provedores querem, as trancas antes da casa arrombada.