O provedor da MIsericórdia de Almada, Joaquim Barbosa, escreveu um artigo de opinião na edição de Fevereiro do jornal "Voz das Misericórdias", onde reflete sobre a estratégia de combate à pobreza em Portugal, que considera uma prioridade e um "desígnio nacional".

Há uns anos, ouvi uma grande senhora da Segurança Social, Drª Joaquina Madeira, dizer que “antes do 25 de abril não havia pobreza em Portugal; só havia pobres”.

Isto resume a evolução que ocorreu com a aprovação da Constituição de 1976 e as sucessivas alterações, fazendo evoluir Portugal de um Estado supletivo para um Estado garante, ao determinar que incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social (art 63º, 2). Desde o alvorecer da nossa democracia que o combate à pobreza foi assumido como desígnio do Estado, tendo-se assumido que isso não se faria por atuação exclusiva dos serviços públicos da Segurança Social, mas em cooperação com entidades privadas sem fins lucrativos atuantes no terreno desde sempre. Algumas há séculos, como as Misericórdias e as Mutualidades. A própria Constituição o consagra, ao referir o contributo dado pelas instituições particulares de solidariedade social com vista à prossecução dos objetivos de solidariedade social, que ela própria consigna (art 63º, 5).

Aqui chegados, o que em matéria de combate à pobreza é feito em Portugal é executado ou pelas autarquias ou por instituições de solidariedade social. E pergunta-se: isso é mau? Entendo que não. Contudo, é preciso analisar como. As Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) são executantes, o Estado é fiscalizador e financiador. Todavia, não pode descurar qualquer uma destas competências. Custa-me muito encontrar cada vez mais indícios de que o Estado descura a componente financiadora e isso não pode acontecer. Por um lado, porque as instituições não têm os recursos financeiros nem forma de os angariar; mas, por outro lado, temo que possamos, um dia destes, constatar que o Estado voltou a ser meramente supletivo. E isso é muito grave.

O défice de alocação de recursos públicos, quer humanos quer financeiros, à execução das políticas e programas no âmbito da solidariedade social vai ainda pôr em causa, senão mesmo inviabilizar, um objetivo governamental, de que sou adepto fervoroso, que é a transferência de competências para as autarquias, nomeadamente no âmbito da Ação Social. Sem querer assacar responsabilidades a quem quer que seja, mas apenas constatando factos, e também falando daquilo que conheço, praticamente tudo o que é execução de programas de apoio a pessoas e famílias e combate à pobreza é assegurado pelas equipas das IPSS. E se era preciso prova para demonstrar que a transferência de competências para as autarquias, nesta matéria, é correta e necessária, ela está no facto de que, ao longo de todo o país, as IPSS não se sentem sós neste combate porque têm sempre o suporte técnico, operacional e financeiro das autarquias, muitas vezes atuando para lá das suas competências formais.

A sociedade portuguesa veio de crise em crise até que mergulhou no cúmulo de todas as crises que é a pandemia. Somos herdeiros de todas as conquistas do século XX, em particular a do reconhecimento dos direitos da pessoa humana. Mas, “direito que não é exercido não é direito nem é nada” e, por isso, o combate à pobreza deve ser assumido como grande desígnio nacional. 

A característica essencial dos programas de combate à pobreza, quer na conceção, regulamentação e execução, é que sejam respeitadores da dignidade da pessoa a apoiar, tendo sempre como objetivo marcado a promoção da sua autonomização.  Por outro lado, devem ser flexíveis e diversificados, de forma a permitir que, na execução, possam adequar-se à diversidade dos seus destinatários.

Mas os programas sociais têm também de ser perenes. A sua vigência não pode estar dependente de ciclos eleitorais. Infelizmente não é o que tem ocorrido, sendo o Rendimento Social de Inserção (que até de nome mudou) paradigma das “modas” criadas e/ou promovidas por agentes políticos ou sociais e insufladas pela comunicação social. É preciso que a sociedade portuguesa assuma este desígnio, podendo isso ser conseguido pela procura de uma consensualização política por quem exerce cargos políticos e dos partidos políticos, enquanto estruturas promotoras da alternância democrática através de apresentação de candidaturas eleitorais.

Nunca como hoje, e a pandemia pode ser o “murro no estômago” que estávamos a merecer, tivemos consciência tão apurada da verdade da frase que um dia terá dito o Eng.º António Guterres “se não tomamos conta dos pobres, tomam eles conta de nós”.  

A pobreza sai-nos muito cara. Entendamo-nos quanto a isso.

Voz das Misericórdias