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- Opinião Rui André | 'Memórias (de)vidas perdidas nos números da pandemia'
"Ao longo do último e atípico ano, vários rostos, especialistas, mapas e gráficos foram dando conta, em infindas conferências de imprensa, da situação epidemiológica do país, sempre com a complacente cobertura da generalidade dos órgãos de comunicação social. Escondia-se, porém, um vazio noticioso enorme que sempre esteve para além do detalhe dos números.
Esta quase obsessão pelos números e constante verborreia de informação só conseguiu mesmo inundar os cidadãos com números astronómicos e fleumáticos que, às tantas, a maioria dos portugueses acabou mesmo por ignorar, principalmente quando estes números transpuseram as centenas, passaram para os milhares e, depois, para os milhões.
Da indiferença e inutilidade destes números à instalação de um medo generalizado por parte de toda a população, foi um ápice, deixando que este novo sentimento relegasse para segundo plano outros aspetos desta espécie de fenómeno social de aceitação e resignação aos números que diariamente nos entram em casa pela televisão. Na verdade, esta quase habituação está tão distante da nossa eventual mudança de comportamento quão próximo esteja o facto de entre as vítimas estar algum familiar ou conhecido nosso.
Optei por isso, enquanto presidente de uma autarquia e enquanto responsável pela comunicação desta pandemia naquele concelho que as informações acerca das vítimas mortais não se poderiam, de forma alguma, diminuir a um frio e abstrato número, até porque os próprios números podem dar uma ideia inversa de sucesso ou insucesso, de melhoria ou o seu contrário.
As manchetes de jornais e aberturas de jornais televisivos com os gigantescos e redondos números dando conta de “X” milhões de casos positivos ou de “Y” milhares de mortos - 801.746 casos de Covid-19 e 16.185 mortes agora, mais algumas daqui a uma hora e muitos mais amanhã ou depois e depois - sobrepõem-se aos números dos casos recuperados ou que, entretanto, saíram dos cuidados intensivos. Na verdade, a redução do número de casos nos cuidados intensivos pode simplesmente dizer que esses doentes faleceram. É, pois, um sinal dado como positivo que na prática pode corresponder à pior das notícias.
A frieza dos números e das estatísticas não é mais do que a alimentações de uma angustiante novela sobre a desumanização de uma tragédia coletiva que estamos a viver ainda.
As pessoas que perdemos todos os dias são avós, pais, filhos, colegas de trabalho e amigos com família que também sofrem com cada uma destas mortes que a estatística esconde. Estes últimos, também eles vítimas desta pandemia, não são números pois aparentemente estão fora dos números, tal como todos aqueles que estão a vivenciar esta pandemia e o confinamento de forma mais intensa e que serão, lamentavelmente, um problema, quem sabe, também um número ao nível da saúde mental no futuro.
Os factos são algo incontornável e indesmentível, quaisquer que sejam os nossos desejos ou paixões não conseguem de forma alguma alterar estes factos e as suas evidências. Contudo, por detrás dos números desta pandemia estão histórias de milhares de pessoas, por detrás das inúmeras conferências de imprensa, há familiares e amigos que são forçados a um luto solitário após perderem os seus entes queridos para esta terrível doença. Há memórias (de)vidas que não podem desaparecer nos cálculos da estatística. Pessoas que deixam memórias que são justas e merecidas, memórias devidas e de vidas que marcaram todos aqueles que não se conformam que estas vidas perdidas se tornem apenas números estatísticos.
Cabe, pois, a cada um de nós prestar a devida homenagem às vítimas, não permitido a vulgarização da morte e valorizando todo o legado e memórias que cada uma destas vidas perdidas nos deixou.
O nosso país tem um histórico pouco recomendável de investimentos em perpetuar memórias, por exemplo em forma de memorial (veja-se o que está proposto para as vítimas dos incêndios de Pedrógão) e por isso não vou propor qualquer memorial. Contudo não podemos deixar de vincar este momento histórico da nossa vida quotidiana mais recente e de encerrar de forma clara os rituais de luto que ficaram por cumprir em tantos lares do nosso país.
Os tempos atuais vulgarizaram conceitos como a morte, a doença, a infeção, o estado de emergência, os números… ou seja, tornou-os naturais.
E de facto, morrer sempre foi algo de tão natural como nascer. Mas raras são as mortes desprovidas de um processo de luto como aquelas que temos assistido ao longo desta pandemia, também ela já vulgarizada ou aborrecidamente aceite como natural.
Presto por isso uma sentida homenagem a todas as vidas perdidas neste último ano no nosso país e no mundo".
Rui André, presidente da Câmara Municipal de Monchique e vice-provedor da Misericórdia de Monchique