Em todo o país, Misericórdias, autarquias e outras entidades reforçam a sua capacidade de intervenção, ao nível da entrega de refeições, cabazes de alimentos, medicamentos e outros bens essenciais, para responder ao aumento de pedidos das famílias em situação de vulnerabilidade, por desemprego e quebra de rendimento decorrentes da pandemia. Os pedidos atingem proporções inéditas e nalgumas localidades já somam listas de espera, apesar dos esforços para aumentar a capacidade de resposta socorrendo-se de sinergias locais.

Misericórdias e instituições responsáveis por operacionalizar os apoios no terreno relatam situações “limite” de famílias (monoparentais, biparentais, alargadas, etc.) que viram os seus rendimentos reduzidos devido à situação de desemprego e de lay off ou cujas necessidades foram agravadas com os confinamentos sucessivos. Mas há também idosos, pessoas isoladas ou em situação de isolamento profilático, sem retaguarda familiar.

Em Sintra, “mega concelho com 450 mil habitantes, 15 paróquias, 11 juntas de freguesia e 42 organizações”, o provedor Manuel Costa e Oliveira adianta que a solução encontrada foi “criar grande cumplicidade com os sintrenses e trabalhar em rede com todas as entidades”.

Quando as prateleiras do armazém ficaram vazias, em abril, para responder ao aumento da procura (mais 100 novas famílias, a juntar às 182 de início de janeiro), a estratégia passou por aumentar a rede de doadores e parceiros. “O ano de 2020 foi de muitas dificuldades, mas também de novas oportunidades de crescimento, tivemos de deitar mãos à obra para conseguir bens de primeira necessidade, com muita criatividade e ajuda de empresas, agricultores, cooperativas, associações e aí devo dizer que a autarquia foi inexcedível”.

Desde então, a prioridade tem sido rentabilizar o potencial das sinergias, aumentar e melhorar o apoio prestado, de modo a garantir não apenas as necessidades básicas, mas nutrir de forma completa e variada. “Os nossos cabazes são um ponto de honra porque são enriquecidos com frutas e hortícolas, carne, peixe e papas de bebé [nem sempre presentes nos cabazes]. A zona norte do concelho é hortícola e não raras vezes esses produtores enchem-nos as prateleiras e as arcas. Centramos muita atenção nas frutas e hortícolas para não serem apenas enlatados”.

A título de exemplo destaca doações de 7800 pacotes de leite (Lactaçores), 400 quilos de perca ou 10 toneladas de melão (produtor de Rio Maior), ressalvando que os excedentes são canalizados para entidades parceiras para evitar o desperdício e aumentar o impacto da ajuda.

No concelho do Seixal, mais precisamente nas freguesias do Seixal e Paio Pires, a Misericórdia assegura a distribuição de cabazes junto de 354 beneficiários (136 famílias), ao abrigo do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas. “O protocolo inicial era para 161 beneficiários, mas desde março houve sucessivos aumentos, passando a 354 destinatários em setembro. Já temos lista de espera [29 pessoas], mas não podemos exceder este limite”, adiantou Maria Teresa Nunes, mesária responsável pela gestão do POAPMC na Santa Casa do Seixal.

Entre os beneficiários, há famílias com menores de idade (cerca de 50% das famílias apoiadas), indivíduos isolados, desempregados de longa duração ou pessoas que perderam rendimentos na sequência da pandemia. “Muitos estiveram até à última para pedir ajuda porque têm dificuldade em aceitar e dizem-nos que antes tinham a vida orientada. Quando vão buscar os alimentos, noto muito desânimo e que precisam de falar, há muitos casos de pobreza envergonhada e situações de grande fragilidade emocional”, comenta.

Em ambas as Misericórdias, o apoio alimentar é integrado numa intervenção mais abrangente, que inclui o acompanhamento social das famílias e que, no caso de Sintra, despoletou a criação de um novo serviço direcionado para a formação profissional e inclusão no mercado de trabalho. Iniciado em outubro, o Centro de Inclusão Profissional acompanha, neste momento, cerca de 30 desempregados na integração laboral e “mudança efetiva de vida”.

Na Misericórdia do Montijo a situação é semelhante. No último mês, chegaram oito novas famílias à cantina social, a maioria em idade ativa e com filhos. Cármen Fevereiro, diretora técnica desta resposta social, conta-nos que em muitos casos “chegam em situações extremas, por não conseguirem fazer face às despesas, e quando não são os próprios a procurar ajuda, por vergonha, são os vizinhos ou familiares que o fazem”.  Para salvaguardar a privacidade destas famílias, a equipa tem a preocupação de agendar a recolha dos cabazes de alimentos em horários desfasados.

Neste momento, a Santa Casa garante a distribuição de cabazes a 58 famílias e a confeção de refeições diárias a 43 utentes e 50 famílias do programa de emergência alimentar. Desde março de 2020, notam que a procura disparou, acentuando-se novamente em setembro, passando, no caso dos cabazes, de uma média de 35 para 58 famílias apoiadas (número atual). A não ser que os donativos aumentem substancialmente, a equipa garante que este apoio está no limite da capacidade, estando apenas disponíveis para ajudar casos pontuais e de emergência.

À Misericórdia do Montijo chegam também pedidos de ajuda de jovens mães, em situações de vulnerabilidade, onde se incluem imigrantes sem contrato de trabalho ou proteção social. “Algumas chegaram em janeiro ou fevereiro de 2020, com contratos de trabalho apalavrados que não avançaram, não reúnem condições para se regularizar e não conseguiram regressar ao país de origem”, detalha Carolina Alves, técnica responsável pelo centro de apoio à vida, que acompanha neste momento 45 pessoas. As necessidades imediatas são asseguradas com recurso a donativos e incluem, entre outros, produtos de higiene, alimentação e formação das mães.

As histórias multiplicam-se em todo o país e as Misericórdias respondem a esse apelo com criatividade, zelo e entreajuda. Em Vila do Conde, duplicou o número de pessoas apoiadas pela Santa Casa, sendo neste momento entregues mais de 900 cabazes todos os meses (face a uma média de 400). A Misericórdia continua também a servir cerca de 150 refeições diárias a pessoas com dificuldades, sem abrigo ou sem condições para cozinhar em casa, atingido uma média de 4500 por mês. “Temos notado que muitas famílias têm condições de confecionar as refeições, mas não têm dinheiro para comprar os alimentos. Tivemos um grande aumento da procura nas cantinas sociais, mas nesta segunda vaga o aumento foi nos cabazes. É outro nível de carenciados, necessitam de apoio de alimentos”, adiantou o provedor Rui Maia.

Atentas às necessidades das comunidades, em cada momento, as instituições respondem aos pedidos (pontuais ou recorrentes) que surgem, em estreita articulação com a rede local, aproveitando a capacidade instalada e os recursos disponíveis. Destacamos, nesse âmbito, exemplos como o de Salvaterra de Magos, onde a Santa Casa assegurou de forma mais regular a confeção de cerca de 150 refeições mensais para indivíduos e famílias carenciadas, de abril a dezembro. Entretanto, os pedidos cessaram, mas a qualquer momento estão prontos para reativar este apoio.

120 000
O Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas (PO APMC), instrumento de combate à pobreza e à exclusão social financiado por fundos europeus, foi reforçado pelo governo em 2020, com um aumento da oferta de cabazes de 60 mil para 120 mil, mas o número de pedidos de ajuda tem aumentado nos últimos tempos e há zonas do país que já não conseguem dar resposta a todas as pessoas, somando listas de espera.

400 000
No fim de dezembro de 2020, o número de desempregados inscritos nos centros de emprego era superior a 400 mil, registando um aumento de 29,6% face a 2019, num total de 91 722 pessoas. Segundo dados do IEFP, destacam-se neste grupo as mulheres, adultos com idade igual ou superior a 25 anos, os inscritos há menos de um ano, os que procuravam novo emprego e os que possuem como habilitação escolar o secundário.

10 000
Entre abril e setembro de 2020, a Misericórdia de Sintra distribuiu mais de 10 mil cabazes de bens alimentares a uma média de cerca de 304 famílias (122 novas famílias a partir de março). Neste período, a Santa Casa assegurou ainda a entrega de 1920 refeições no refeitório e 4184 na cantina social e distribuiu 5073 kits de refeições no domicílio a pessoas em situação vulnerável (infetados, isolados, em confinamento), no âmbito de parceria com autarquia.

150
A Misericórdia de Salvaterra de Magos confecionou e distribuiu uma média de 150 refeições mensais entre abril e dezembro de 2020, atingindo o pico de entregas em novembro. Desde então, o provedor João Drummond Sousa adianta que os pedidos de apoio são residuais. “Os pedidos surgiram em abril, vindos de pessoas da comunidade, famílias, idosos, pessoas isoladas, alguns casos de pobreza envergonhada. Ultimamente não tem aparecido ninguém mas sentimos que fomos úteis na altura”.

Governo cria cartão
para apoiar as famílias

Para agilizar a resposta aos pedidos de ajuda, o governo prepara a criação de um sistema de cartão recarregável que permite às famílias adquirir bens essenciais diretamente nos estabelecimentos comerciais. "Ao cartão será atribuído um plafond, com periodicidade e regularidade de carregamento", adiantou o gabinete da ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho.

Ajudar as famílias
com filhos menores

Entre os 354 beneficiários (136 famílias) que recebem apoio alimentar da Misericórdia do Seixal, cerca de 68 são famílias com filhos menores. Neste grupo incluem-se beneficiários de RSI, famílias monoparentais e pessoas com situações de desemprego prévias ou decorrentes da pandemia. O apoio prestado no âmbito do PO APMC, iniciado em 2017, abrange duas freguesias. Em lista de espera estão 29 pessoas (11 famílias).

Vergonha de pedir
ajuda alimentar

Os pedidos de apoio que chegam à cantina social da Misericórdia do Montijo são, na sua maioria, de famílias em dificuldades por causa da pandemia. Cármen Fevereiro, diretora técnica, conta que, em muitos casos, “têm vergonha de pedir apoio e são os vizinhos ou familiares que pedem”. Tratam-se de “situações limite” de famílias (alargadas, nucleares, monoparentais, com filhos menores) que foram privadas dos seus rendimentos.

Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas.