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- Pão por Deus | Abrir portas à solidariedade no ‘Dia de Todos os Santos’
“Bolinhos e bolinhós/Para mim e para vós./Para dar aos finados/Qu'estão mortos, enterrados./À porta da bela cruz/Truz! Truz! Truz!/ A senhora que está lá dentro/Assentada num banquinho./Faz favor de s'alevantar/P’ra vir dar um tostãozinho.
Se ouvir esta cantilena sugerimos que abra a porta. Do outro lado poderão estar as crianças da Misericórdia da sua terra, prontas para acolher a sua generosidade nos saquinhos que transportam. O Pão-por-Deus é uma tradição que remonta a 1756, na sequência do rasto de destruição e pobreza provocado pelo sismo. Um ano depois do terramoto que devastou Lisboa, os menos afortunados saíram à rua para pedir “Pão-por-Deus” e matar a fome.
Mais de 250 anos depois, a tradição associada ao primeiro de novembro, dia em que a Igreja Católica celebra Todos os Santos, resiste sobretudo fora das grandes cidades. Mas nem tudo é igual. Hoje o motivo que faz as pessoas sair à rua é outro e as oferendas que recheiam os sacos também. As frutas, nozes e pão que outrora passavam de mão em mão foram, em muitos casos, substituídas por guloseimas, rebuçados e bolachas.
Em Alenquer, as crianças do Centro Infantil e Juvenil da Misericórdia fizeram muito mais do que bater às portas e pedir Pão-por-Deus. No seu passeio pelas pequenas povoações do concelho, distribuíram versos e bolinhos num “verdadeiro espírito de partilha”, que surpreendeu os anciãos das localidades. “Hoje é dia de Pão-por-Deus/Abra a casa e o coração/Não é preciso dar muito/O que conta é a intenção”, entoaram os pequenos do alto dos seus 4 e 5 anos. “O objetivo era manter viva esta tradição” e levar à letra o significado da expressão “dar e receber”, explicou a diretora pedagógica do centro.
“Para as crianças foi um dia diferente. Houve um grande entusiasmo em sair à rua e contactar com as pessoas. É importante interagirmos com a comunidade para que percebam qual é o nosso objetivo. A Misericórdia de Alenquer também pode ter um papel de manter viva a tradição e de incutir este espírito de partilha nas crianças”, continuou Cláudia Luís.
Os preparativos começaram uma semana antes e ninguém quis ficar de fora. Amontaram-se as mãos por entre os quilos de farinha e desfilaram os dedos com a vontade de provar a massa. Os idosos do centro de dia da Misericórdia gostaram tanto das broas que os pequenos lhes levaram que no próximo ano se vão juntar à confeção dos bolinhos dos Santos.
Ainda na região Oeste, rumamos a Torres Vedras, onde o pão-por-Deus foi sinónimo de “convívio” e “festa” para os idosos do lar e das residências assistidas da Misericórdia. Relembrando os tempos de infância e as visitas de porta em porta, os utentes passaram o testemunho às crianças do presente para retribuir as oferendas do antigamente.
“O objetivo foi possibilitar o encontro entre duas gerações numa atividade que é tradição aqui na zona”, explicou a animadora cultural, Ana Sousa. Neste dia, a generosidade foi a palavra de ordem. As broas confecionadas pelos idosos e acondicionadas em saquinhos personalizados passaram das mãos rugosas para os dedos ágeis dos 60 meninos vindos do jardim-de-infância e escola básica do Sarge. Para uns foi o primeiro contacto com esta tradição. Para outros uma forma de recordar a mocidade. Numa partilha de testemunhos, foi possível perceber que as próprias lembranças diferiam consoante o contexto familiar de cada um. Enquanto para alguns a ocasião era vivida em família, para outros a necessidade movia a romaria de porta em porta.
Nas ilhas, a tradição também tem resistido às agruras do tempo. Avós e netos da Misericórdia de Machico amassaram a farinha, nozes, pinhões, passas e erva-doce em bolinhas uniformes e aguardaram com deleite o momento da prova. Pouco depois de levar os tabuleiros para dentro da cozinha do Centro Intergeracional, a animadora cultural já ouvia exclamarem: “Olha, já cheira! Já cheira a erva-doce!”.
Ao mudar-se de malas e bagagens para a ilha da Madeira, Paula Oliveira trouxe de Torres Vedras a receita das broas e adaptou-a ao paladar dos novos conterrâneos. Parece ter sido bem-sucedida. “Os idosos gostam imenso e alguns dizem que os faz lembrar os pãezinhos doces que comiam em pequenos”.
Nos Açores, as crianças e idosos também foram protagonistas das celebrações do pão-por-Deus. O convite dirigido pela Misericórdia de Madalena do Pico ao lar de idosos e Centro de Apoio à Criança e Centro Ocupacional (CACCO) resultou numa “ponte com o passado” mas não virou costas ao presente. Uma das novidades foi a decoração das “caixinhas do peditório”. Cada família deixou a sua marca numa amálgama de cores inspirada nas “tradições dos países de onde vêm: Cabo Verde, Itália, Ucrânia”, como nos explicou a diretora técnica do CACCO. Outra das surpresas levadas aos idosos foi a música na voz das crianças, para retribuir as guloseimas ofertadas. “Hoje as saquinhas enchem-se de coisas menos saudáveis, como chocolates, rebuçados e bolachas, mas antigamente enchiam-se de batata-doce, milho, castanhas e bolo cozido”, lembra Márcia Costa.
A digressão pelas ilhas açorianas continua em Angra do Heroísmo, onde mais uma vez, a tradição reúne diferentes gerações e adoça a boca dos mais gulosos. Para os idosos do lar da Misericórdia, a visita das crianças da escola primária da Carreirinha foi motivo de grande alegria. Nas caixas forradas a jornais antigos, depositaram bombons para os meninos e receberam canções do pão-por-Deus em troca. Para os idosos as guloseimas foram outras: escaldadas, uns “bolos com duas farinhas e erva-doce” típicos nesta data.
Içamos as velas e atracamos por fim em Ribeira Grande, onde a tradição também não foi esquecida. No centro de dia da Misericórdia, não houve bolinhos mas sim compotas de abóbora, oferecidas pelos participantes do projeto de inserção profissional ECOS (desenvolvido em parceria com o núcleo local de inserção).
Assim se celebrou o Pão-por-Deus nas Misericórdias, a dar e receber o que se tem, num verdadeiro espírito de partilha e solidariedade. Crianças e idosos mantiveram vivas as tradições, num testemunho vivo do passado e legado para o futuro”.
Reportagem publicada na edição de Novembro de 2015 do jornal “Voz das Misericórdias”