Um convite para a criação de 500 exemplares do mesmo objeto pode remeter para um imaginário de fábrica: a máquina despacha tudo, os corpos amolecem na rigidez do gesto fixo, necessário para expelir pela quingentésima vez o mesmíssimo objeto que foi criado à primeira. Depois repete-se, imita-se à exaustão. Passando de 500 para 1500 objetos, o tamanho da fábrica imaginária triplica, mantém-se a amplitude do gesto, exatamente igual desde o princípio, desde o primeiro objeto, desde a primeira moldagem de uma imagem inaugural: fazer, com as mãos, um rosto. E outro, e mais outro, até perfazer os 1500, até atentar no fim o mar de caras e perceber que, afinal, houve uma avaria na fábrica: nenhum rosto é igual ao outro.
Isto é porque o Centro de Apoio Social do Pisão (CASP) está longe de ser uma fábrica. Aí, 30 utentes construíram 1500 bustos em terracota para a Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, dos quais 1000 foram integrados na exposição ‘Insomnia’, com obras do fotógrafo José Luís Neto, entre 17 de maio e 15 de setembro de 2024. Foi a segunda encomenda deste tipo de trabalho aos artistas do centro, que há quase dez anos expuseram na Bienal de Coimbra um primeiro conjunto de 500 bustos, a encabeçar corpos verticais de madeira em vez de sobre portas na horizontal, dispostas no chão, como agora: não há duas disposições iguais.
Em 2015, aquando da visita de Carlos Antunes às instalações do CACI (centro de atividades e capacitação para a inclusão), o curador da bienal fez a primeira encomenda das 500 cabeças. A terapeuta ocupacional Maria João Nogueira recorda o deslumbramento do curador que reconheceu naquele trabalho a arte bruta e que resultou de uma “atividade normal enquadrada na resposta”, onde as pessoas criavam “cabeças sem qualquer influência” dos monitores; uma atividade “pela expressão artística pura”. A partir dessa atividade rotineira, esses rostos foram levados ainda ao Porto e “depois houve uma exposição itinerante também no Alentejo através do Plano Nacional de Saúde Mental”, conta Maria João. “Uma coisa que começou por coincidência, o impacto que tem, muitas vezes não percebemos”.
Nove anos passados, a onda desse acaso longínquo levou à costa mais uma consequência, que foi o contacto renovado para encomendar 1500 cabeças em terracota. Com o toque da curadoria da bienal, os trabalhos dos utentes partilharam o criptopórtico do Museu Nacional Machado de Castro, em diálogo com os retratos de José Luís Neto. O artista trabalhou sobre uns negativos originais de Joshua Benoliel, fotógrafo que captou, a 5 de fevereiro de 1913, a cerimónia da abolição do capuz nos presos na penitenciária de Lisboa. O antes e o depois dessa cerimónia ficaram guardados no negativo original no arquivo de Benoliel com os números 22474 e 22475: o rosto coberto e o rosto descoberto, aqui ampliados, indefinidos pelo granulado próprio do processo fotográfico. Acompanhados pela composição sonora de Fernando Fadigas, a bienal propôs este espaço como “uma exposição acerca da conquista/direito da identidade individual no espaço público”.
À beira do espaço público, anos depois de os presos se verem livres do capuz que lhes tapava a cara, foi criada em 1942 a Colónia Penal Agrícola do Pisão, uma dependência do Albergue da Mendicidade de Lisboa. Neste espaço aplicava-se a política do Estado Novo de “regeneração da sociedade”, abrangendo todos os “pobres, sem abrigo, ladrões, homossexuais e doentes mentais”, citando uma publicação do Centro de Apoio Social do Pisão no Facebook (9/12/2016) em que conta um pouco mais da sua história.
É a história de um lugar afastado que se assemelhava a uma fábrica grotesca, com trabalhos forçados para os ditos marginais da sociedade, sob a atenção afiada da polícia desde os campos agrícolas até à “construção dos edifícios da colónia”, em que a violência ocupava um espaço onde o cuidado não entrava.
No âmbito da pesquisa para a conferência ‘O que pode um lugar? – A Quinta do Pisão’, a arquiteta e artista multidisciplinar Joana Braga ouviu a provedora da Misericórdia de Cascais, Isabel Miguens, sobre como no pavilhão para doentes mentais, criado em 1949, “podia não estar lá o médico nem o enfermeiro vir”, tudo isto “nas barbas de Cascais”. Ao relembrar o seu primeiro contacto com o espaço, não encontra palavras: “Não tem descrição, era um abandono.”
Mais de 100 anos depois da abolição do uso de capuzes por presos em Portugal e mais de 80 anos depois de o Pisão servir de casa hostil a pessoas cuja existência em liberdade foi negada, hoje os utentes podem moldar bustos em argila com as próprias mãos, inseridos num ambiente seguro. Neste caminho feito ao longo do último século, tanto no Pisão como a nível nacional, há dois momentos incontornáveis: em 1957, por iniciativa da Misericórdia de Lisboa, organiza-se o primeiro curso de terapia ocupacional em Portugal, e em 1985 o Pisão passa a ser gerido pela Misericórdia de Cascais, denominando-se ‘Centro de Apoio Social do Pisão’.
Nas palavras da diretora técnica do CACI, Raquel Ramalho: “Quando abrimos em 2008 havia a terapia ocupacional, mas estávamos ainda muito isolados da comunidade. Na altura pensava-se que a terapêutica farmacológica era mais importante do que a própria atividade e a equipa conseguiu reverter essa realidade”. Eram pessoas que estavam há muito tempo institucionalizadas, sem grande contacto com a comunidade, e o desafio lançado foi precisamente “ir para a comunidade, mostrar o Pisão e aquilo que é capaz de ser feito, dar valor às pessoas, humanizar.” É um caminho que se faz caminhando.
Convites como o do curador Carlos Antunes são prova viva disso. “As pessoas já nos procuram, isso para mim é a evolução mais gratificante”, diz a terapeuta ocupacional Maria João. “É isso que pretendemos, que haja uma desmistificação das ideias que as pessoas têm em relação à saúde mental.”
E quem diz saúde mental fala de cabeças, fala de prisioneiros, fala de utentes, fala de pessoas. O trabalho desenvolvido hoje no Pisão “é para afirmar a cidadania, que é um direito de todos” e estas oportunidades legitimam, de fora, a mudança que começa ali, dentro da casa onde o cuidado conseguiu entrar, na busca de uma igualdade no tratamento de todos: “Eles têm problemas, nós também temos. Todos temos problemas diferentes. Desde que a pessoa consiga desenvolver as suas capacidades, o melhor que pode, ela estará a contribuir à sua maneira.”
Ilustração: dualgo
Voz das Misericórdias, Duarte Ferreira