“Há 40 anos era um caixote de lixo para onde se atiravam pessoas”, recordou Isabel Miguens, provedora da Misericórdia de Cascais, ao referir-se à antiga Colónia Agrícola do Pisão. Datada dos anos 40 do século XX, para ali eram empurrados homens com demência, marginais e a mendicidade que vagueava pelas ruas de Lisboa e Porto. “Aqueles que a Mitra não queria, vinham para aqui”, afirmou.
Em 1985, a história mudou e também a vida de quem vivia esquecido dentro dos 300 hectares da Quinta do Pisão, território de ninguém em Alcabideche, Cascais.
À manifestação de incapacidade de lidar com herança dos despojos do Albergue Distrital da Mendicidade de Lisboa (Mitra) e ao desafio do Instituto da Segurança Social à Misericórdia de Cascais, Isabel Miguens tomou o assunto em mãos.
Aliou a juventude à paixão por temas sociais e levou o pedido ao então provedor Mário Cruz. Recebeu um sim e, no dia seguinte, tomou as rédeas do novo desafio. “Nem sabia o que estava a dizer. Partimos abaixo do zero. Comida queimada, colchões queimados, fezes e gorduras no chão e um cheiro nauseabundo. Saí do refeitório e ia vomitando”, recordou à margem das comemorações dos 40 anos do Centro de Apoio Social do Pisão (CASP), assinalados com dança, música e teatro, a 2 de fevereiro, no edifício Cruzeiro, em Cascais. “Quando for ver as fotografias, percebe”, disse, ao convidar à visita do centro gerido pela Misericórdia de Cascais desde 1985.
“A primeira coisa foi lavar. Depois cuidar das pessoas, tratar da alimentação, saúde, admitiram-se enfermeiros e médicos”, relembrou. “Começámos esta caminhada de olhar para aquelas pessoas como se fôssemos nós. Todos podemos precisar do Pisão”, assinalou ao VM.
Nas curvas e contracurvas da Estrada Nacional 247-5, as letras ‘Pisão’ anunciam a chegada à Quinta do Pisão e aos terrenos da antiga Colónia Agrícola, hoje geridos pela empresa municipal Cascais Ambiente. Os 298 utentes diagnosticados com patologia psiquiátrica estão a cargo da Misericórdia de Cascais.
Do passado, ficou a arquitetura do Estado Novo. As condições desumanas dos “internados” da colónia vivem nos rostos fotografados e expostos na ‘Casa dos Lagares’, espaço museológico que combina objetos agrícolas e médicos de uma vida passada, mas não apagada, e produtos saídos das mãos dos utentes que transformam papel e lãs em peças para decorar e vender para o exterior (ver texto ao lado).
Vários edifícios, variados fins. Todos têm CASA nas placas. “No fundo, é a casa deles”, sintetizou Anabela Gomes, diretora técnica do CASP. Na ‘Casa das Letras e das Ideias’, onde há uma biblioteca, “requisitam-se livros, o Tiago toma conta do espaço e explica como se usa o computador”. Nas quatro ‘Casas da Lua’ vivem 24 pessoas com “mais autonomia e potencial” de reabilitação. “Limpam a casa, lavam a roupa e tratam da comida. É um trampolim para sair”, confessou.
Os residentes inserem-se nas dinâmicas de funcionamento do centro. Na lavandaria, jardinagem e no refeitório. A mercearia disponibiliza “produtos de higiene, bolachas ou pilhas, numa resposta, sobretudo, para quem não consegue ou não tem vontade de sair”, sinalizou. Joaquim, terceira geração de sapateiros, vende cintos, faz colagens e remenda o que lhe chega também de fora, contou o próprio.
A sala de snoezelen é o local de estimulação sensorial, da memória e dos sentidos, através de cores, música e um colchão de água aquecido. Os quatro centros de atividades e capacitação para a inclusão (CACI) estão divididos em três polos. Oficinal para “pessoas mais autónomas”; conforto e bem-estar para “grande dependência e graves défices cognitivos”; e ocupacional, com nível “intermédio”.
“Uma sala para ligação do utente com a família, fora da zona de internamento, recria uma casa, um espaço de exposições e o cabeleireiro”. São novidades que se estendem aos residentes. “A população está a mudar, é cada vez mais jovem. Tem outras necessidades e daí o campo de futebol. Temos uma equipa de formação, de competição e tentamos arranjar torneios com outras instituições”, relatou.
“Queremos devolver às pessoas aquela dignidade que elas perderam pelo facto de terem sido colocadas cá”, finalizou Anabela Gomes, recebida, por onde passava, sempre com uma palavra, um sorriso e um toque de afeto.
“Temos de ser dignos daquilo que fazemos e isso acontece todos os dias, multiplicado pelos trabalhadores que lá estão”, reforçou Isabel Miguens. “O Pisão é uma vila e tem hoje a vida própria de uma casa, só que tem mais de 300 pessoas a viver e mais de 200 funcionários”, assinalou. “Qualquer um de nós já pode dormir no Pisão e isto é uma coisa que nos deve sossegar, tranquilizar, porque era completamente impossível que tal acontecesse antes”, comparou. “Hoje é uma história de sucesso, uma história incrível”, finalizou.
Voz das Misericórdias, Miguel Morgado