Sentado numa ‘joelette’, uma cadeira adaptada com uma roda puxada e empurrada por elementos do Núcleo de Espeleologia de Leiria (NEL-Pédatleta), João Faria, utente da Misericórdia de Pombal, é o rosto da felicidade. O olhar emociona-se a cada ovação da população que enche as ruas da cidade para assistir a mais uma edição da Prova do Bodo, realizada no dia 30 de julho, e ao regresso de João a uma corrida que tão bem conhece e que tantas vezes fez, antes de as debilidades próprias da idade e, depois, um AVC o terem atirado para uma cadeira-de-rodas.

Ainda antes do tiro de partida, João Pimpão, presidente da Câmara de Pombal, recordou os tempos em que "ninguém arredava" pé até que o João Faria cortasse a meta. "Os maiores aplausos eram para ele, uma figura incontornável e marcante da nossa cidade", referiu o autarca, que iria depois acompanhar e ajudar o grupo do NEL-Pédatleta a transportar a 'joelette' com que o utente da Misericórdia de Pombal fez os dez quilómetros da prova, agora batizada com o seu nome. Trata-se, explicou o autarca, de "uma homenagem em vida", que reconhece o "carinho" que a comunidade de Pombal sente por João Faria e a "mística" que este representa.

Sem conseguir expressar por palavras o que lhe vai na alma, devido à afasia que o afeta, sequela do AVC que sofreu no início deste ano, mas também à emoção, João Faria agradece por gestos, acenando e sorrindo à multidão que o aplaude e que grita o seu nome. O momento alto acontece ao cortar a linha da meta, onde é recebido com uma enorme ovação, à qual retribui com sorrisos e lágrimas de felicidade.

"Foi um momento único e de alegria plena. Quem conhece o João percebeu. E foi isso que, depois, já mais tranquilo, ele nos transmitiu", revelou Célia Oliveira, diretora do Lar Rainha Santa Isabel da Misericórdia de Pombal, onde o utente vive desde 1990. Até à pandemia, o mais correto seria dizer pernoitar, porque João Faria passava grande parte do dia na cidade. Era habitual vê-lo, de cavalete montado no Largo do Cardal, a pintar ou encontrá-lo na Serra de Sicó, onde fazia as suas pesquisas, em busca de fósseis ou até de algum vestígio de dinossauro, uma das suas grandes paixões. Era também na cidade que normalmente almoçava e que gostava de falar de futebol e do seu Benfica.

Depois, veio a pandemia e os sucessivos confinamentos, que o obrigaram a reajustar a sua rotina diária, que ficou ainda mais condicionada com o AVC. "Adaptámos uma zona da sala de estar que passou a ser o seu escritório. Catalogava livros e dedicava-se às suas pesquisas e à sua coleção de borboletas", contou Célia Oliveira. Foi também nesse espaço que recebeu a notícia de que a prova de atletismo do Bodo passou a chamar-se Corrida João Faria, precisamente no dia 26 de julho, quando completou 77 anos.

"É uma forma de retribuir todo o carinho que sentimos por uma das personalidades mais carismáticas da nossa terra", reforçou o presidente da Câmara, em declarações ao VM. O autarca agradeceu à Santa Casa da Misericórdia e às suas equipas o "humanismo" e a dedicação ao utente "todos os dias do ano" e a colaboração da equipa do NEL, que proporcionou este momento único, disponibilizando a 'joelette' e a equipa para a conduzir.

"O melhor agradecimento que podemos receber é a felicidade que proporcionamos", afirmou Paulo Dias, um dos condutores de 'joelette', reconhecendo que a prova foi "difícil", sobretudo devido à temperatura elevada que se fazia sentir, com os termómetros a marcarem 33 graus no momento da partida, às 19 horas. "Também sofremos um pouco, mas a dor supera-se com a alegria dos 'pilotos', ou seja, das pessoas que transportamos", afiançou.

A par da paixão pela arqueologia - era frequente encontrá-lo a escavar nos arredores de Pombal à procura de achados -, João Faria também gostava de pintura, escultura e fotografia. Chegou também a fazer embalsamentos.

"O João é muito nosso, da instituição e da comunidade. Somos a sua família", rematou, com emoção, a diretora técnica do Lar Rainha Santa Isabel.

Voz das Misericórdias, Maria Anabela Silva