Apesar da cobertura noticiosa, que indicia elevado número de mortes em lar, a taxa de infeção nas Misericórdias mantém-se abaixo de 1%. Num quadro de transmissão comunitária, a maioria das Santas Casas tem conseguido evitar ou minimizar a disseminação do vírus SARS-CoV-2 nos seus equipamentos e à custa de sacrifícios coletivos e pessoais que extravasam o contexto laboral.
O levantamento feito junto das instituições, no âmbito do Estudo Epidemiológico da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), tem permitido apurar dados que, segundo o presidente do Secretariado Nacional “nos honram a nível nacional e internacional”. Numa nota enviada a 26 de setembro, Manuel de Lemos congratulou-se com o “resultado notável” alcançado na vigésima primeira semana de recolha de dados, com “zero óbitos nos lares pela quarta semana consecutiva”, e pediu a todos os provedores e colaboradores que “não baixem a guarda”.
Blindar os lares obriga a uma vigilância permanente e rigor profissional dos colaboradores, que são o elo de ligação ao exterior e possível veículo de transmissão nas estruturas. Basta um deslize para desencadear o contágio, por isso todos os dias recomeça a batalha, assevera o vice-presidente da UMP. “É uma enorme exigência para estas pessoas, mas temos de ter noção que ganhamos batalhas diariamente, amanhã começa uma batalha igual à de hoje porque o vírus está na mesma, o risco de alguém ter um descuido é enorme”.
Manuel Caldas de Almeida reconhece que o mérito é das equipas, cuja atuação é pautada por uma “competência profissional e alto padrão de vigilância, 24 horas por dia, 30 dias por mês”. Dando como exemplo o caso de Mora, que acompanha de perto por ser provedor, o médico geriatra destaca o comportamento exemplar da equipa do lar da Misericórdia alentejana, num momento crítico de transmissão comunitária, em que o surto atingiu mais de 60 pessoas na localidade.
Os resultados negativos, depois de uma testagem massiva a colaboradores e utentes, vieram comprovar a eficácia das medidas implementadas até então, onde se destacam a formação e sensibilização permanente, equipas em espelho e, a juntar a tudo isto, a consolidação de práticas de controlo de infeção, ao longo de quase 10 anos, com o apoio da Comissão de Controlo de Infeção (CCI) da UMP e da enfermeira da unidade de cuidados continuados da Misericórdia de Mora.
Este processo de melhoria contínua facilitou a adaptação às normas emanadas pela Direção Geral da Saúde, a partir de março, mas segundo a diretora técnica não ficou por aí. Desde então, Diana Pinho e a equipa continuam a privilegiar a partilha de saberes com os profissionais de saúde e a vigilância constante dos procedimentos e comportamentos de risco. “Não podemos baixar os braços, todos os dias recomeçamos a batalha”.
Na prática, isto significa “estar muito atento a situações em que nos colocamos em risco e falar abertamente sobre isso. Temos de estar constantemente a corrigir falhas, numa abordagem positiva, de motivação, e de acompanhar as equipas no exercício de funções e nos momentos de pausa”.
Profissionais são agentes de saúde pública
A enfermeirada Comissão de Controlo de Infeção (CCI) da UMP, Paula Nobre, alerta para a importância das precauções básicas de controlo de infeção, não apenas na prestação de cuidados, mas também nos momentos de pausa, refeição e lazer. “É importante ficar claro que o risco está na comunidade e não nos doentes, por isso o cuidado deve incidir também no contacto com os pares. O risco não está na prestação de cuidados, está na nossa vida pessoal e nos comportamentos de risco. Não vale a pena estar de escafandro a prestar cuidados ao doente se depois vamos tomar café com os colegas e não cumprimos o distanciamento”.
Os profissionais são o principal veículo de transmissão nas estruturas residenciais e unidades de saúde porque circulam na comunidade e têm, por isso, uma responsabilidade acrescida no cumprimento de medidas e monitorização diária de sintomas. Paula Nobre recomenda ainda cautela na gestão de visitas, novas admissões, saídas ao exterior e permanência de utentes em locais sem ventilação adequada, onde não é possível garantir o distanciamento.
A par da vigilância permanente de sintomas e comportamentos de risco, entre os pares, em contexto laboral e no seio do agregado familiar, tem-se revelado determinante a deteção precoce dos casos para evitar a disseminação da infeção no seio das estruturas.
Ao longo de setembro, registaram-se casos pontuais de infeção em Misericórdias que, na sua maioria, não se disseminaram pelos utentes e colaboradores devido à deteção precoce e rápida capacidade de testagem, contrariamente aos primeiros surtos de março, abril e maio.
No Cartaxo, distrito de Santarém, a supervisão constante e articulação com as entidades de saúde permitiu reagir ao primeiro sinal suspeito e testar em menos de 48 horas. “Quando soubemos que uma funcionária estava positiva chamámos a equipa e fizemos desinfeção geral, contenção de utentes e testagem de todos. Soubemos os resultados no próprio dia, foi muito ágil o processo”, adiantou a diretora técnica, Inês Nunes. Esta ameaça fez aumentar o grau de alerta e proteção na estrutura e tirar ilações valiosas para o futuro: “há coisas que não vamos voltar a fazer e mudanças de procedimentos que foram fundamentais para melhoria”.
Em Sernancelhe, apenas duas funcionárias testaram positivo, depois de terem sido realizados testes a toda a equipa e utentes (total de 209 pessoas), num concelho onde a percentagem de infetados chegou a ser a mais alta do distrito de Viseu (1,28%). Segundo a diretora técnica, Teresa Gonçalves, esta contenção do vírus numa fase inicial deveu-se, sobretudo, ao zelo das colaboradoras, ao reforço de informação e avaliação de sintomas pela equipa de enfermagem. “Foi um milagre de trabalho, não baixámos a guarda, pelo contrário, estamos a reforçar para garantir esta cintura de segurança. Temos vivido com tanta aflição que é terapêutico para a nossa equipa saber que é reconhecida pelo serviço que assegura com tanto esforço”.
Todos reconhecem que este momento é uma prova de fogo para os profissionais e os dirigentes não perdem uma oportunidade para reconhecer o esforço. “Não basta exigir, é preciso saber agradecer. O sucesso é de uma equipa e elas têm sido excecionais, têm feito sacrifícios pessoais e de tempo, acabam por ser voluntárias dentro da própria instituição”, reconhece Diana Pinho, diretora técnica em Mora, num desabafo espontâneo.
Voz das Misericórdias, Ana Cargaleiro de Freitas
Fotografia: José Artur Macedo